Emblema da
38ª Companhia de Comandos
"Os Leopardos"


TESTEMUNHOS E CONTRIBUTOS

38ª Companhia de Comandos — "Os Leopardos"

 

E depois da Guerra… (Parte 1)
(in ''memórias do CAP INF CMD Victor Pinto Ferreira)

 

Eram quase cinco horas, os serviços da unidade iriam fechar dentro em pouco. Se não terminássemos o “desembaraço” teríamos que regressar no dia seguinte até obter o desquite e o término das obrigações militares. Com algum jeito e alguma persuasão conseguimos resolver as pendencias. Aproximou-se a hora da despedida depois de mais de dois anos juntos. Partíramos de Lamego para Angola para frequentar o Curso de Comandos findo o qual fomos desafiados a integrar uma Companhia de Comandos que na Guiné dava o seu melhor num conflito que se tinha intensificado pela melhoria acentuada das capacidades do inimigo em termos de armamento e outros apoios. Face ao meu conhecimento da situação em Angola não tive dúvidas em aceitar o convite no que fui seguido pelos outros três companheiros de equipa. Agora preparávamo-nos para iniciar novos percursos cheios de interrogações.

Ainda lancei um desafio para uma última refeição mas cada um de nós tinha pressa para seguir aos seus destinos. Foi com alguma tristeza que peguei no saco e tomei a direcção do aeroporto deixando para trás companheiros com quem acabara de passar os anos mais importantes da minha vida. No balcão da companhia foi com facilidade que confirmei a passagem que anteriormente reservara. Na verdade eu seguia em direcção contrária ao contínuo fluxo de portugueses que perante as nuvens que envolviam o futuro de Angola, desembarcavam em Lisboa ainda à procura de soluções para um porvir que se começava a revelar problemático.

O Jumbo descolou às 00H15 da pista da Portela e rumou ao sul para uma viagem que duraria longas horas e ia levar-me até à terra onde o coração me arrastava. Pelas sete o Sol já tinha nascido revelando um céu vazio de nuvens com traços avermelhados sobre um fundo profundamente azul. Através da janela vejo a Ilha, essa mágica língua de areia onde ao sabor das calemas deixei muitas vezes embalar-me cuidando que a vida não me traria problemas. Como estava enganado. Do outro lado da baia, a marginal aparecia majestosa com os seus edifícios mais emblemáticos que eu vira nascer cerca de duas dezenas de anos antes. Estavam dentro do perímetro das minhas explorações em volta da escola primária onde aprendi as primeiras letras. O avião afastava-se agora por cima do mar e preparava-se para aterrar no Craveiro Lopes. A antiga Gare situada acima das Ingombotas, já há muito tinha dado lugar a novos espaços urbanos e alargado Luanda para o interior. Ultrapassada a porta de desembarque corri para o exterior na tentativa de apanhar um transporte que me levasse à baixa onde procuraria saber quais as hipóteses de me dirigir ao Dondo local onde me seria possível atingir com facilidade a casa de meus Pais de quem há mais de dois meses não tinha noticias. Durante a minha estadia na Guiné tinham deixado a fazenda junto ao Úcua e iniciado um novo projecto que envolvia a criação de gado para fornecimento de leite e carne ao mercado de Luanda. A área tinha condições propícias para o projecto e as condições que foram apresentadas eram tentadoras. Todavia o facto de ter acontecido o 25 de Abril enchia de interrogações todos os espíritos.

Parei na Mutamba ainda um pouco perdido com a confusão de que me fui apercebendo ao longo do trajecto. As primeiras imagens de Luanda recolhidas no trajecto eram perturbadoras. Nada correspondia às recordações que tinha até esse dia. Tumultos em cada esquina, estendendo-se em algazarra ao longo da baixa trazendo o medo às pessoas que apressadas como formigas fugidias tentavam sumir para outros lugares. Instintivamente subi a calçada que ligava ao largo fronteiro à Igreja do Carmo e onde se situava a casa do Tio Damásio.

A porta da escola de condução estava aberta mas um estranho silêncio ecoava nas diferentes salas e corredores dando sinal que ali não estava ninguém e que provavelmente pelo menos naquele dia a escola não funcionaria. Hesitante, avancei para a área da habitação anexa onde a família morava, descobrindo na cozinha a velha Maria das Ingombotas que desde que eu me lembrava era a desde sempre a cozinheira da família. Foi com alegria que nos cumprimentamos e eu perguntei por todos. Ali fiquei a saber que o Tio Damásio e a Tia Maria da Luz tinham partido para a metrópole há uma semana sem data precisa de regresso. A menina Heloísa, filha mais velha do casal partia nesse dia com marido e filhos também com regresso improvável e que o único que continuava em Luanda era o Dr Zé António, o filho mais novo economista e professor na Universidade que a esta hora devia estar a regressar do aeroporto aonde tinha ido despedir-se da irmã e dos demais. Agradeci a Cuca posta à minha disposição que fui saboreando gostosamente à medida que o líquido gelado me escorria pelas goelas abaixo diminuindo a imensa sensação de sede que o calor e a confusão instalada no exterior me tinham provocado. Apanhei um exemplar da Província do Bengo que jazia abandonado na mesa junto aos sofás da sala e pelo teor das três ou quatro notícias principais recolhidas na primeira página fui-me apercebendo do caos em que tinha caído Luanda. Nesses poucos meses posteriores ao derrube do anterior governo muito tinha mudado.

Pela janela observei a praça que nos separava da Igreja do Carmo e da Camara Municipal. Nos horizontes da minha memória recordei as brincadeiras descuidadas que com a miudagem da escola travei à volta de uma pequena macieira da India, muitas vezes carregada dos pequenos frutos verdes, de travo amargo doce, saboreados nos intervalos em que a areia fina espalhada na área em redor nos convidava a um descanso e a tomar folego para mais uma ronda de correrias de polícias e ladrões num afã incansável de gastar as muitas energias que os nossos corpos jovens acumulavam nas muitas horas passadas nos bancos da escola do outro lado da praça.

A demora de José António fez-me folhear mais algumas páginas do jornal detendo-me com algum interesse nas páginas das ofertas que reflectiam com realismo o que se estava a passar com a sociedade daquela cidade. De alto a baixo, anúncios de vendas alinhados por ordem alfabética, passavam dos automóveis, aos alugueres, pelos barcos de recreio, motas, mobílias, recheios de habitação etc onde todas as pechinchas eram fáceis de descortinar.

Ruídos de passadas rápidas chamaram a minha atenção e interromperam a leitura desta autentica cronica social e de imediato tinha na minha frente o José António. Ainda não recuperado pela surpresa da chegada e do new look apresentado pelo meu primo, enquanto o abraçava soltei aquelas palavras de circunstância e também de admiração:

- Foi há três anos a ultima vez que estivemos juntos, já nem te conhecia. A barba e o cabelo sem visto de barbeiro dão-te um aspecto diferente e torna-te irreconhecível. Na minha cabeça recordava este meu primo sempre de fatinho, gravata e cabelo curto, alinhado a “Bill Cream” e via-o agora num contraste gritante com barba de missionário, de sandálias, balalaica esverdeada e calças de vaqueiro.

- Tu também estás mudado, respondeu ele. Estás mais magro ia dizer que se passaram muitos anos e não apenas os dois que estiveste na Guiné.

- Na verdade não foram tempos fáceis e sabes, ficam sempre marcas. Mas pelo pouco que vi aqui as coisas também me parecem feias.

-não me fales. Os pais e a Heloísa foram embora, vamos a ver se adaptam a viver no frio. Foram muitos anos disto. Eu quero ver se me aguento, não conheço outra terra, aqui nasci e cresci o meu universo é este. Já fiz as minhas escolhas tenho bons conhecimentos em vários lados, penso que poderei fazer a transição sem problemas para os novos tempos que se adivinham.

- O mesmo não posso dizer eu. Acabei de chegar e já vejo que não vou conseguir encaixar nesta nova ordem. Dum lado vejo aqueles que em 61 massacraram os nossos, apesar dos anos passados continuo a sentir um nó no peito cada vez que as imagens e relatos vêm ao de cima. Do outro vejo aqueles contra quem acabei de lutar, adeptos de uma nova ordem cuja vivência não me entusiasma pois será sair de uma prisão para outra muito maior pois é esse o entendimento que tenho dos paraísos onde o sistema funciona. Poderá ser que procure uma solução alternativa. Mas para já quero chegar a casa. Não tenho notícias dos meus Pais e como as coisas estão já deviam ter vindo para Luanda.


- Receio bem o que vais encontrar. Na região muitas fazendas têm sido assaltadas e só não tem escapado quem não tem possibilidades para o fazer. Olha se quiseres transporte para a fazenda pode ser que te consiga arranjar uma boleia com o irmão do Senhor Manuel de Almeida, pois todos os dias vem um camião desde a fazenda deles, a “Almeida e Irmão”, abastecer o mercado de Quinaxixe e volta a seguir ao almoço. Com sorte ainda o apanhas hoje. Vamos almoçar e se quiseres levo-te lá a ver o que se arranja, se não voltamos lá amanhã.

- Bem vistas as coisas, Luanda não é o que era, uma cidade segura de dia e de noite, onde se podia passar umas boas horas a beber um copo. O tempo urge. Agradeço os teus préstimos pois acho que essa será a melhor solução, talvez a única.

A Maria das Ingombotas pôs o almoço na mesa, cozinha angolana. O funje com dendem estava no ponto. Um pescado da ilha passado nas brasas completava o menu e outra Cuca deu-me lastro para as horas seguintes.

Ainda não eram duas horas quando nos pusemos os dois, Vasco da Gama acima, em direcção ao Quinaxixe. Ali, no balcão do snack-bar, José Almeida acabava um tradicional bitoque com ar de quem não tinha muito tempo a perder. Feitas as apresentações fiquei a saber que ele e o irmão tinham uma fazenda perto da propriedade dos meus Pais. As notícias que me adiantou não eram esclarecedoras. Um dos Movimentos controlava a zona e era com dificuldade crescente que se fazia o trajecto até à sua propriedade. De qualquer modo ia voltar à fazenda e era com satisfação que me dava uma boleia, logo se veria como correriam as coisas.

Mal acabou de almoçar metemo-nos no camião, uma breve passagem pela casa de José António para recolher as minhas coisas e um saco com pão e fruta as despedidas com promessas de noticias e eis-nos os dois a subir os combatentes a passar a Sétima Esquadra passar ao lado do quartel de Belo Horizonte aonde ainda descortinei no meio dos embondeiros a nossa Bandeira e a insígnia dos Comandos. Como gostaria ter parado para ver o local onde verdadeiramente me tornei militar, mas tínhamos que continuar.

Ultrapassamos o Grafanil, à porta de armas uma coluna de veículos militares aguardava para entrar nas instalações. Nas viaturas, militares davam azo á sua expectativa de em breve deixarem o serviço. Com os meus botões pensei que nada de bom podia advir se esta pressa fosse contagiante….Passamos Viana e continuamos rumo a Catete, terra de Agostinho Neto. À maneira que nos aproximamos cartazes com os símbolos do MPLA apelavam ao apoio ao Movimento. Nas cubatas algumas bandeiras pretas e vermelhas eram a expressão de quem na zona estava em maioria. A estrada atravessava agora uma zona menos povoada o que levou a que estabelecesse-mos um diálogo que me permitiu antecipar aquilo que iria viver nas próximas horas.

- Então senhor José está cá desde quando?

- Eu vim em 62, um ano depois dos acontecimentos. O meu irmão Manel tinha deixado S Pedro da Torre, Valença do Minho em 57 e veio para Angola. Inicialmente foi encarregado de uma fazenda ali para os lados do Caxito. Com os acontecimentos de 61 muitas propriedades foram abandonadas. A reocupação pela tropa a partir dos fins de 61 proporcionou ao meu irmão tomar conta de uma fazenda perto das Mabubas, cujos donos não quiseram enfrentar a instabilidade que ainda se vivia. As coisas estavam-lhe a correr bem, motivo que o levou a escrever-me convidando-me para vir. Na altura tinha acabado de fazer dezoito anos. Na aldeia não havia empregos a não ser na lavoura, dava-se um jeito no contrabando mas era sempre um risco. Isto aqui estava a dar, os maus tempos pareciam ter passado. Depois tinha que fazer o serviço militar e se calhar era melhor fazê-lo cá, parece que era menos tempo. Quem sabe, podia ser a minha sorte… mal eu sabia. Em 66 mudamo-nos para aqui. Mais segurança, mais longe da guerra e junto ao asfalto, para sul Nova Lisboa e para norte Luanda. Bolas ainda não sei como tudo isto vai acabar.3 vezes por semana faço a volta, carrego o camião na fazenda para vender em Luanda a clientes fixos no Quinaxixe e às vezes na Samba. Mas alguns já desapareceram e os pagamentos estão a tornar-se difíceis. O que vale também trago a credito, nomeadamente o gasóleo para o camião e para as maquinas.

O pior é que desde que chegou a Unita ao Dondo as coisas complicaram-se e de que maneira. Controlos à entrada e à saída, sempre à espera de matabicho e já me ameaçaram que se não me filiar no partido que prendem o camião. Eu trago aqui a bandeira deles mas já me disseram que me vão entregar os papéis para ser filiado. Não sei como me vou safar. A viagem continuou a boa velocidade deixando para trás Zenza, Maria Teresa, as terras do Dondo aproximavam-se. A entrada do Dondo uma barragem na estrada obrigou-nos a parar o que me levantou uma serie de interrogações. As perguntas e os pedidos /ordens habituais. O saco de fuba já vinha preparado, o mata-bicho ainda funcionava nesta altura. Não deu para parar dentro da povoação. Depois da entrada, outras barreiras sucediam-se com os mesmos propósitos. Com uma volta rápida saímos por uma picada paralela à estrada principal e já depois da patrulha que controlava a saída a sul, retomamos o itinerário sempre de olho nos retrovisores para avaliar potenciais seguidores o que felizmente não aconteceu. Tínhamos agora de agir com cautela se queríamos chegar ao nosso destino.

Pela minha mente interrogações sobre como foi possível que a situação se tivesse deteriorado tão rapidamente.
Agora dirigíamo-nos rapidamente para tentar passar o rio depois da barragem de Cambambe. Subitamente tiros vindos da retaguarda atravessam a cabine do camião. José acabara de ser atingido e a custo conseguiu segurar o carro. Deito uma mão ao volante. Com esforço consigo que o veículo vá seguindo uma rota segura à medida que o meu companheiro se esvaia em sangue que às golfadas saía pelas goelas e por dois rasgões que transpareciam debaixo da camisa. O seu olhar imóvel permitiu verificar o óbvio, morrera. O camião imobilizou-se. Certifico-me que não estou ferido. Recolho com rapidez aquilo que desejo ter comigo antes de ter de abandonar o camião. Do porta-luvas uma pistola e munições. Com o meu saco mochila vou correndo afastando-me do local quando chamas começam a envolver o que em breve será a pira funerária do até então meu companheiro.

Dirijo-me para sul tentando atingir o rio enquanto ao longe vejo aproximar-se do sinistro, um jeep com alguns militares africanos certamente tentando deitar a mão a dois ocupantes. Aproveito um muxito para me esconder e ver quais as intenções dos meus perseguidores. Do saco bebo uma golada da garrafa que oportunamente trazia comigo. Aproveito para ver com o que posso contar para conseguir sair da enrascada em que me vejo metido. Não trago muito mas certamente o suficiente para tentar desenrascar-me. Lembro-me da prova de orientação que fizemos no curso e pelas minhas contas tenho pela frente pelo menos 100kms até chegar a um local onde poderei procurar ajuda. Para já tenho que arranjar maneira de atravessar o rio pois há que evitar fazê-lo pela ponte pois deve estar debaixo de olho das forças do Movimento. Com cuidado vou descendo a encosta que se estende até ao curso de água que me separa da outra margem. De abrigo em abrigo assegurando-me que o caminho está livre vou aproximando-me da água. Em cima de um penedo vejo companhia nada agradável, um jacaré de aí uns três metros, apanha os raios de sol que lhe transmitem o calor que necessita. Sei que já me pressentiu pois um leve abanar da cauda dá disso notícia.

Sigo a margem afastando-me do local onde imagino existir a ponte que leva a estrada para sul, cruzando o rio para lá onde também me dirijo. De súbito algo escondido na margem chama a minha atenção. Eureka uma canoa. Sabia que as populações, mantem estes tipo de meios em locais, onde estão disponíveis, para economizar um par de quilómetros a quem deseja fazer a travessia fora das pontes existentes. Perante esta descoberta, decido aguardar que anoiteça para atravessar para o outro lado.

Enquanto aguardo aproveito para retemperar forças. O crepúsculo chega sem aviso e em minutos a noite cerrada descerá sobre o vale acompanhada por uma nevoa que se irá adensar e dificultar a minha pretensão. Não sou um perito em navegação mas alguma coisa aprendi em Lamego na iniciação que me foi dada no manejo destes meios. Num ápice estou dentro da canoa tratando de ter bem preso o meu saco mochila que desde que saí do aeroporto ainda não deixou de me acompanhar. Como gostaria de ter acompanhado o Capitão Trovão nas suas pescarias nocturnas no rio Bengo de que ouvíamos falar cada vez que nos deslocávamos para a Funda.

Deixo a canoa seguir o seu curso rio abaixo. Com calma vou corrigindo o rumo de maneira que se vá aproximando da margem oposta. Afinal parece mais fácil do que imaginara. O treino e a experiencia são certamente a base de sucesso para ultrapassar muitas das situações complicadas que enfrentamos na vida. Um leve bater faz-me sentir que a viagem está a acabar. Finalmente estou ligado a terra firme.

Seguro a embarcação e opto por esperar aí pelo amanhecer pois antes de reiniciar o meu percurso tenho que tomar algumas precauções e seguramente uma delas será camuflar a canoa pois a sua descoberta poderá alertar os meus perseguidores para a minha posição. Também não me convém iniciar a jornada sem me aperceber como é o meu entorno e escolher aquele que será o melhor trajecto inicial para prosseguir.

O dia tinha sido extenuante e com alguma movida. Depois de uma golada de água e uma bucha preparada na cozinha da Maria das Ingombotas adormeci sem querer, aproveitando o leito da canoa como cama abrigo disponível. Nem senti os mosquitos que junto ao rio eram mais do que muitos e como noutros lados e noutros tempos já tinha experimentado.

Acordo antes do amanhecer com a sensação de estar a ter um estranho sonho que fez com que desse um salto que conduziu directamente à realidade. O cenário colocava-me numa história onde uma tribo africana me tinha aprisionado e à força fui enfiado num caldeiro onde ia ser cozinhado. Quando comecei a sentir a água destinada à cozedura acordei e vi que afinal umas grossas gotas de chuva começavam a cair sobre mim e tinham sido o motivo do acordar tão intempestivo.

Com calma arrastei a canoa enfiando-a debaixo de uns arbustos de modo a que só se tornasse visível a quem tropeçasse nela. Feito, com cuidado começo a subir a encosta tentando seguir um caminho que me fosse dando protecção da possível observação de quem duma ou da outra margem estivesse atento. Chego ao planalto e descanso um pouco e tento coordenar ideias que me facilitem um plano. Reparo que nas costas do bilhete do avião, um pequeno mapa de Angola dá-me ideia da zona onde me encontro o que com auxílio da pequena bussola que sempre me acompanha vai-me permitir ter uma ideia geral de como chegar ao local onde me dirijo, a propriedade dos meus Pais junto à povoação do Lussusso. Pelos meus cálculos devo estar a cerca de 100kms de distância. Se tudo correr bem, 4 a 5 dias de marcha serão suficientes para atingir a povoação. O problema principal é que os “bocadilhos” que trouxe comigo não durarão mais do que dois dias pelo que forçosamente terei que encontrar algo com que enganar a fome. Penso que com a água não haverá problema pois irei enchendo a garrafa de plástico que tenho comigo, à medida que for cruzando as inúmeras linhas de água que correm em direcção ao rio.

Começo a andar tentando descobrir aonde passa estrada que materializa a direcção geral que me orienta. A visibilidade ainda é pouca e a esta hora o trânsito deverá ser diminuto terei que aguardar mais algum tempo para que os indicadores que procuro se tornem mais perceptíveis. Deixou de chover a temperatura está agradável e o terreno permite avançar a bom ritmo. Ao dobrar um tufo de vegetação apanho o primeiro sobressalto. Á minha frente, estacado no trilho que venho a seguir, um leopardo ainda novo encara-me pronto a atacar-me. Com gesto de pistoleiro a pistola aparece-me na mão esquerda enquanto com os olhos procuro uma pedra que tomo com a direita. Olhos nos olhos, fito este outro leopardo fazendo-lhe compreender que partilhamos genes e que encurralado não terei outra opção que não seja utilizar as armas que tenho. Como gostaria de ter comigo o sossego duma G-3 ou duma Kalash. Sorte é de não estar desarmado. Nunca me passaria pela cabeça ter um encontro destes. Por bem talvez pela minha veterania baixou a cauda deu meia volta e seguiu caminho a trote largo. Fiquei contente afinal os Leopardos estavam comigo.

A meio da manhã parei a marcha pois o calor começou a apertar. Por outro lado apercebi-me onde passava a estrada e dei conta que havia mais movimento do que aquilo de que eu estava à espera.

O tempo que decorreu até às 3 da tarde deu para pensar e fazer um plano mental que me pudesse ajudar a atingir o local onde esperaria receber ajuda e recolher as informações que procurava. Aquilo que deduzi como exequível foi: deslocar-me em condições que proporcionassem a melhor cobertura possível para que não fosse surpreendido nem por forças dos possíveis movimentos presentes na zona nem das populações existentes ao longo da estrada. Para tanto deslocar-me-ia a distância segura donde me fosse possível avaliar o que se passava no itinerário mas sem prejudicar a minha ocultação. Conjugar no deslocamento as horas de menor calor (alvorecer e entardecer) e aproveitar as restantes para descansar. Eventualmente e caso a caso aproveitar as oportunidades para deslocamento nocturno. Explorar todas as hipóteses de conseguir alimentos especialmente dos locais onde havia plantações. Pernoitar perto dos cursos de água para aproveitar para reabastecer e cruzar os cursos protegido pelas horas e condições de luz mais propícias.

Recordei também as diferentes lições de sobrevivência que recebera no Curso dum experimentado Sargento Comando e dos versos que alguém lhe dedicou em jeito de despedida a propósito de um leitão desaparecido:

“Quando estávamos no Curso uma aula surgia com frequência, agradeço ao Sargento… as aulas de sobrevivência…”

Nesta circunstancia em que me via envolvido, finalmente disponibilizei-me para provar e se necessário comer com vontade os tão apregoados gafanhotos que até Alguém no NT tinha apreciado.

Chegou a hora de me mover e diminuir a distância que me separava do meu objectivo. Pela sete da tarde tinha andado cerca de quinze kms que fui avaliando contando os passos como tinha feito muitas vezes quando pelo comandante me era indicada essa tarefa. Um manto de nevoa que se tornou mais espesso à medida que rapidamente caía a noite e que produzia uma incómoda sensação térmica que a pouca roupa que trazia comigo acentuava. Era frio, o que me dava para andar, andar para aquecer enquanto fosse possível.

Do outro lado da estrada diviso aquilo que me parecia ser um kimbo, as silhuetas baixas das palhotas assim o indicava. De onde a onde elevava-se no ar uma reduzida coluna de fumo e às vezes o que pareciam ser as silhuetas de um ou outro habitante. Depois algo me alertou para os ladridos dessa espécie de cão, rodas baixas, rabo no ar, pele e osso, sempre pronto a denunciar novidades, às vezes um animal mas agora poderia estar a anunciar a minha passagem ao largo.

Tempo de interromper a marcha e aguardar que as coisas serenassem. Por sorte vejo que mesmo à frente uma pequena língua de água permite que me ponha mais longe de quem me queira seguir a pista.

Algum tempo depois decido continuar a marcha já que a claridade da Lua e ausência de nuvens permitem-me visibilidade para caminhar com alguma segurança. Ainda não atingi o objectivo para estas primeiras horas que apontavam para pelo menos mais cinco kms andados.

Entretanto começo a divisar um certo clarão certamente indicador de iluminação pública de algum lugar sito à beira da estrada. À medida que me aproximo julgo enxergar dois ou três candeeiros e luz proveniente de três edifícios. Com cuidado aproximo a direcção de marcha mais um pouco do objecto da minha curiosidade e vejo que se trata de um aglomerado típico nas estradas desta zona de Angola, onde um restaurante, umas bombas de combustível e uma loja de aldeia, são o polo agregador de populações e o apoio dos condutores que as utilizam. Achei por bem voltar à minha intenção inicial, isto é, continuar a marcha e ignorar a vontade que sinto de atravessar a estrada e procurar uma boleia que me conduza de forma comoda e rápida para sul. Julgo já ter percorrido os vinte kms que estabeleci como meta diária para com calma e segurança percorrer tão extenso percurso.

Um mau local escolhido para dormir impediu que conciliasse o sono o que só veio a acontecer depois de muita tremedeira que a ausência de uma manta tanta falta fez. Se me tivesse ocorrido tinha metido no saco mochila a manta que a hospedeira do avião tão gentilmente me tinha cedido para enrolado passar as horas que durou o voo.

Retomo a marcha e desde logo começo a verificar que o terreno vai descendo suavemente e que depois alarga-se através duma planície. Junto à estrada a área é cultivada conforme o desenho revelado pela silhueta do arvoredo implantado à minha frente. Com cuidado vou-me afastando da zona que me parece agricultada evitando qualquer hipótese de contacto com alguém que esteja no local. Com o aproximar deu para observar um bananal, com cachos maduros, pendendo aos pares e prontos a ser colhidos.

Da minha mocidade lembro os primeiros “golpes de mão” que em conjunto com os meus primos realizávamos ao longo das férias de verão. Na altura a designação não era tão fina. Sei lá, modos do seculo anterior. Vinda de qualquer um de nós a ordem/convite “vamos às uvas” do Tio Gaivota, despertava-nos para um misto de aventura e de quebra de regras, levando-nos a que com cabeça tomássemos os cuidados e preparativos potenciadores do sucesso de mais um raide que passava por evitar o confronto com o “inimigo”, pois se tal acontecesse as relações com os nossos avôs e Tios poderiam azedar e sobrarem para nós as consequências em termos de qualidade e quantidade das brincadeiras que gostávamos de ter nas nossas férias.

Normalmente aproveitávamos a hora morna e remansosa da sesta em que todo o mundo parecia dormir, os nossos e os outros. Agora parecia o caso a aurora estava a raiar não se via ninguém e os cachos de bananas estavam bem à vista e à mão de semear. Silhueta flectida uma aproximação cuidada e ei-los na saca e regresso à segurança da mata de onde partira. É hora de matabichar. Duas bananas saborosas vêm preencher o “hueco” que sentia no estomago. Não haja duvidas, a nossa espécie só podia ter surgido aqui neste continente, pois com muito pouco engenho há sempre maneira de matar a fome. Até me souberam a leitão.

Durante mais de duas horas continuei a marcha embalado pelas bananas que comera e confortado pelas que trazia dentro da mochila em espera para uma próxima refeição.

O período de maior calor passei-o em lugar abrigado e com sossego para fazer a sesta. Com calma reiniciei a marcha não me lembrando da sorte que estava a ter pela ausência de incidentes que pusessem em causa o meu objectivo.

Ao anoitecer já tinha deixado há muito a plantação de bananas que me acompanhara boa parte do percurso no lado esquerdo. Descuidadamente fui-me aproximando da estrada facto que poderia tornar perigoso o deslocamento. De onde a onde um ou outro veículo circulava a boa velocidade normalmente carrinhas ou camiões, o que me punha a boa interrogação se não seria de tentar por esse meio prosseguir viagem.

Outra vez o clarão de uma pequena localidade. Distingo perfeitamente onde está o bar restaurante com as bombas de combustível em frente. A tentação é grande. Mais uma carrinha estaciona. O condutor, europeu desce e ultrapassa os poucos degraus da entrada do restaurante. Nada se mexe no largo, a bomba acaba de apagar a iluminação, sinal que terá encerrado. Depois do raide às bananas de manhã vou arriscar agora o da boleia. De cócoras vou-me aproximando da berma da estrada. Por sorte pelo lado onde a claridade é menor pois uma frondosa “mangueira” impede os luminosos raios de atingirem o local onde me situo. Olho para um lado e depois para o outro da estrada nada à vista. É agora. Num lance atravesso a estrada e agacho-me junto ao camião que está mais perto. Depois outro lance e estou junto da carrinha. Abordo a caixa de carga e por sorte vejo o costumeiro oleado que é normal andar neste tipo de transporte. Escorrego com ligeireza para dentro e num ápice estou debaixo do oleado pronto a passar desapercebido até ver…

A carrinha pôs-se em movimento vagarosamente enquanto o condutor deixou no ar despedidas e até breves como se quisesse indicar que tencionaria voltar a este local dentro de algum tempo. Na estrada o acelerador funcionou e eu tive que mais uma vez como muitas noutras na minha vida de decidir mas neste caso a decisão a tomar era óbvia não poderia deixar de bater no vidro que separava a cabine da caixa e apresentar-me como passageiro clandestino ao condutor … se bem pensado, seguiu-se a execução. Como evidente um certo sobressalto depois um abrandar da velocidade e eis-nos nas apresentações. Logo de início deu para perceber que estávamos no mesmo barco quer pelo passado e no que imaginávamos de futuro. Ambos viamo-lo com muita incerteza mas sabíamos que era hora de tomar decisões. Concretamente este meu companheiro de viagem acabara de ser despedido de Voluntário da OPVDCA e rodava a sul numa tentativa de juntar os familiares que ainda estavam em Angola e rumar a novo destino. Concordou em deixar-me no Lussusso, local onde tinha amigos e inclusive tinha ideia do Sr Manuel de Almeida e das actividades agrícolas e comerciais que desenvolvia. De passagem referiu que muita gente estava a pensar organizar uma coluna com os pertences que pudessem carregar e rumarem a sul até atingirem o Sudoeste Africano. Referiu também que Forças Sul Africanas estariam dentro de território Português concretamente na zona de Calueque para garantirem o prosseguimento dos trabalhos na barragem que teriam sido interrompidos depois das forças Portuguesas terem sido retiradas do complexo.

Parou à porta do estabelecimento do Sr Manuel e sem grandes despedidas deixou-me ali seguindo viagem de imediato.
Eis pois como foram os meus primeiros passos depois daquele final de tarde em que vos deixei à porta de armas do quartel e nos separamos há mais de quarenta anos, dizia eu aos meus três companheiros sentados em dois bancos corridos a volta de uma tosca mesa, onde pelo menos mais de vinte Leopardos petiscavam com vontade os mimos que o anfitrião distribuía por todos na já célebre Tabanca dos Leopardos. (continua)


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Trigésima Oitava Companhia de Comandos
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