OPERAÇÕES DA 38ª COMPANHIA DE COMANDOS
GAMPARÁ
38ª COMPANHIA DE COMANDOS
15 de Agosto a 2 de Novembro 1972
Relato feito a partir das
memórias do Capitão Comando Pinto Ferreira
A 11de Agosto de 1972 recebemos a mensagem para seguirmos para Brá
para a cerimónia de imposição dos crachás e que na alínea 2 nos
mandava em 15 de Agosto para Gampará.
Confesso que foi uma surpresa de que não estava à espera.
Naquele mês e meio que levávamos de Mansoa e “arredores” já nos
estávamos a habituar à terra apesar do calor e dos mosquitos.
A habituação foi fácil.
Que me lembre um quadrilátero delimitado
por 4 ruas asfaltadas definia a zona europeia desta vila/cidade
no coração dos Balantas.
O cine esplanada, o tasco da libanesa,
o restaurante do Simões da Mealhada que nos confins do mato nos
oferecia comida portuguesa de excelente qualidade e a casa do
administrador Guerra (natural de Bragança), compunham o ramo
daquilo que podíamos chamar de civilização, além disto, o
quartel com instalações razoáveis e para lá do asfalto, as
várias tabancas agrupadas segundos as respectivas etnias.
Dá
para entender que nos fomos familiarizando com este cenário e
era com entusiasmo que tínhamos pedido cimento e materiais à
engenharia e começamos a reorganizar a parte que nos coube do
quartel.
Já tínhamos os símbolos “Comando” no refeitório, no bar
etc.
Pobrezinhos sentíamo-nos orgulhosos da nossa remodelada
casa. Até aí nunca tínhamos ouvido falar de Gampará e até
estávamos convencidos que iríamos passar muito tempo em Mansoa
pois a outra companhia de comandos Europeia estava em Teixeira
Pinto no chamado Chão Manjaco e estava a dar bem conta de si
apesar do comandante de companhia ter sido gravemente ferido e
evacuado.
Foi pois como que um martelo nos batesse na cabeça
quando lemos a segunda parte da mensagem.
A rapaziada nos “mentideros”
recebeu a mais variada desinformação e eu pelas vias normais
colhi os elementos que me podiam ajudar a tomar uma decisão.
Pois que a mensagem era extraordinariamente sintética: “a
companhia segue para Gampará na LDG …. Em 15de Agosto” e “punto”.
Face aos elementos recolhidos tomei a decisão de levar apenas a
componente operacional da companhia deixando para trás grande
parte da formação sob o comando do meu Adjunto.
Comigo iria
apenas um pequeno módulo que nos permitisse viver em Gampará
pois decidimos que o melhor seria adir a uma companhia de tropa
normal que estava lá instalada.
Importa dizer que íamos
substituir no local a 2ª Companhia de Comandos Africanos e daí
me ter apercebido que esta era uma missão rotativa por onde já
teria passado pelo menos uma companhia de Paras.
Tudo isto
porque numa remodelação do dispositivo e numa tentativa de
subtrair populações à influencia do PAIGC, fora meses antes
decidido ocupar esta região para o que se montou uma verdadeira
operação anfíbia á semelhança dos desembarques dos “marines” no
Pacifico.
Seguiu-se a construção de um ”reordenamento” em que
estava empenhada a companhia TN reforçada por uma companhia de
Tropa Especial para o caso do inimigo resolver complicar esta
acção.
"...
Decididamente foi o pior sítio onde estive no que toca a
condições sanitárias e de apoio logístico...."
Decididamente foi o pior sítio onde estive no que toca a
condições sanitárias e de apoio logístico.
Mas vamos ao relato
da viagem.
Partimos de Bissau, do local onde estavam atracados
os navios da Armada.
O transporte foi na LDG Alfange, a partida
às 09h00 de 15 de Agosto.
LDG Alfange - 101
Deu para conhecer outra realidade da
Guiné e que até aí nos tinha passado ao lado, é que boa parte
das comunicações na Província eram feitas através dos rios.
O que quer dizer que boa parte dos reabastecimentos e dos
movimentos de pessoal seguiam esta via.
Era normal que militares
fossem mandados seguir aos seus destinos em barcos chamados
Nh’mingas, usados em movimentos comerciais pelos nativos.
Para trás ficara Mansoa e um tipo de vida sobre terra a que estávamos
mais habituados.
Através do rádio ia tendo noticias” on-line” do
que ali se passava e uma das primeiras que me chegou não foi
nada do meu agrado.
Como tivemos um curto prazo de aviso face á
nossa mudança de situação, tivemos que gerir com cuidado os
géneros que tínhamos requisitado na perspectiva de continuarmos
mais tempo em Mansoa.
Como tal não aconteceu dei instruções para
que negociassem com o Batalhão para lhes passarmos os géneros
que o pessoal que ficou em Mansoa não iria consumir em tempo
útil, pelo menos os perecíveis.
Tudo foi feito em conformidade
excepto com o bacalhau que na metrópole é normal ser de longa
duração mas que aqui, por via do calor e da humidade caso não
seja consumido rapidamente se estraga.
Não sei o que se passou.
Se o vague mestre não se apercebeu desta situação ou se o
Batalhão não tinha capacidade para consumir mais aquela
quantidade o certo é que numa das minhas ligações rádio apareceu-me
o vague mestre, todo choroso a dizer que o bacalhau se tinha
deteriorado.
Que não tivera culpa pois não adivinhava que nos
iríamos mover com aviso prévio tão curto.
Faço aqui um parêntese
para explicar como funcionava o “Rancho”: cada militar tinha uma
verba diária para alimentação que salvo erro rondava os 30
escudos.
A companhia geria a verba de acordo com o número de
militares presentes, apresentando as contas mensalmente.
Os géneros eram adquiridos à Manutenção Militar ou em recursos
locais, davam entrada no depósito de géneros e conforme as
presenças iam saindo os diferentes artigos para confeccionar as
refeições havendo o cuidado de tentar manter o equilíbrio dos 30
escudos diários por cabeça, o que até não era difícil.
Dá para
ver que o bacalhau entrou no depósito representando uma
determinada quantia em dinheiro, apenas podendo ser abatido ou
por cedência a outro depósito ou pela justificação do
conveniente número de refeições consumidas confeccionadas com o
dito.
Como tal não era possível a solução apresentada era fazer
um auto, solução que era atendida quando por exemplo o depósito
tinha o azar de levar com uma morteirada em cima.
Neste caso o
auto acabou por ser aprovado dando razão à companhia, mas vá se
lá a saber porquê a companhia foi mandada pagar o prejuízo.
Vejam como uma decisão a montante põe em cheque a administração
no terreno.
Acabaram por ser os fundos particulares que pagaram
o prejuízo.
Mas histórias de bacalhau não acabam aqui.
Já lá
vamos.
Podemos dizer que a viagem decorreu sem incidentes dentro
daquela banheira muito grande destinada ao transporte de tropas
e todo o tipo de material especialmente o auto.
Navegamos no
Geba e de seguida no Corubal (não são o mesmo rio?) e chegados á
ponta da península do grande dedo apontado a norte, ladeado
pelos dois rios e que dá pelo nome de Gampará.
O “navio” abicou
de frente na margem de modo a facilitar o descarregar de
material e viaturas que seguiu connosco.
Ali fomos recolhidos
pelas viaturas da companhia, salvo erro de artilharia, de quem
iríamos receber apoio e seguimos viagem por 3/4 kms até ao local
que nos iria servir de tecto durante cerca de 3 meses.
Á primeira vista não deu para tirar grandes ilações nem com isso
íamos preocupados.
Depois aos poucos fomos vendo que iríamos
viver nas mesmíssimas condições em que uma tabanca vivia.
Quando
agora vejo o National Geografic , continuo sem entender tanto
entusiasmo em compartilhar alojamento e alimentação tribal que
os protagonistas de certas séries científicas demonstram.
Devo
esclarecer que no tocante à alimentação tínhamos a nossa própria
ementa, como veremos.
Pois bem a aldeia era um quadrilátero de
casas feitas de adobe e cobertas por chapas (zinco?).
Como
devíamos providenciar segurança, a linha de casas periférica
estava destinada aos militares europeus.
"... As casas não tinham
portas nem janelas (sacos faziam de cortinados para tapar a luz
e impedir a entrada de bicharada), a propósito depressa
descobrimos que os mosquitos daqui conseguiam ser muito mais
bravos dos que já conhecíamos de Mansoa, tornando-se mesmo na
classe mais elevada em termos de comparação...."
As casas não tinham
portas nem janelas (sacos faziam de cortinados para tapar a luz
e impedir a entrada de bicharada), a propósito depressa
descobrimos que os mosquitos daqui conseguiam ser muito mais
bravos dos que já conhecíamos de Mansoa, tornando-se mesmo na
classe mais elevada em termos de comparação.
Pessoalmente para
combater esta ameaça na primeira vez que regressei de férias à
metrópole, encomendei na luvaria Monteiro da Arcada (Braga), uma
luvas tipo Búfalo Bill e numas bombas de Gasolina, descobri o
stick Tabard um excelente e efectivo repelente para a mosquitada,
pois o fornecido pelo Laboratório Militar era uma autêntica
compota para tão insocial animal.
Nas primeiras noites que
passamos nesta zona se não fosse penoso daria para rir, ver o
pessoal com as testas e cabeças deformadas pelas picadas.
"...
Era um tormento, mal a luz do dia desaparecia, chusmas de mosquitos
saíam do capim e abatiam-se sobre nós e durante toda a noite
para além das picadas capazes de penetrarem a lona das botas,
rodeavam a nossa cabeça fazendo aquelo ruído que nos faz lembrar
as brocas dos dentistas e que muitas vezes parece que ainda
estou a ouvir. ..."
Era um tormento, mal a luz do dia desaparecia, chusmas de mosquitos
saíam do capim e abatiam-se sobre nós e durante toda a noite
para além das picadas capazes de penetrarem a lona das botas,
rodeavam a nossa cabeça fazendo aquelo ruído que nos faz lembrar
as brocas dos dentistas e que muitas vezes parece que ainda
estou a ouvir.
Resultado nem pensar em dormir e como também não
podíamos mexer muito sob pena de alertamos guerrilheiros que
estivessem próximo, imaginem a tortura.
No quartel/tabanca
depressa me habituei a dormir debaixo de uma manta da tropa,
protegido por um mosquiteiro e com 2 Lion Brand, 1 à cabeceira e
outro aos pés, a queimar toda a noite, não importava o calor que
fizesse.
Pois de alojamento estamos conversados.
A água com que
vivíamos era retirada da bolanha em bidões e os cantis davam uma
ajuda para lavar a cara e barbear.
Claro que desde o 1º dia
começamos a ter pessoal de baixa com os mais estranhos sintomas,
muitos relacionados com problemas de pele e quase sempre
acompanhados de febre.
Como não havia pista e a Marinha só
passava de 15 em 15 dias, era o helicóptero que funcionava para
evacuar o pessoal cuja capacidade a nossa enfermaria não
conseguia resolver.
Desde cedo vimos que adir á Companhia de
Artilharia não tinha sido a melhor opção especialmente no
aspecto alimentar.
Depressa descobrimos que no máximo haveria 4
ementas e uma delas era o bacalhau à espanhola, que rapidamente
foi baptizado “à Gampará” pois em pouco tempo passou a ser
detestado por todos.
Contrariamente ao bacalhau que apodrecera
sem ser consumido em Mansoa, este vinha devidamente embalado em
caixas herméticas de folha, de uma qualidade pequena e com uma
textura em tudo semelhante à madeira com que se fazem as caixas
para os alimentos. Era dar uma dentada e se não tivéssemos visto
que era bacalhau julgávamos que estávamos efectivamente a
trincar uma farripa que logo jogávamos fora.
As alternativas
eram o prato de Domingo que consistia em ervilhas de lata,
fiambre da mesma origem e ovos escalfados, estes com o sabor que
era comum em toda a Guiné, mesmo nos restaurantes em Bissau e
que sabiam e cheiravam a “fénico”, levando a que em muitos lados
se usava o ovo em pó.
O 3º prato era a celebre massa com
chouriço e por último tínhamos a feijoada com cabeça de porco,
muito apropriada para o calor que se fazia sentir.
É claro, dá
para perguntar se nós éramos uns turistas muito esquisitos visto
que pelo menos duas companhias de Tropa Especial já tinham
estado no mesmo local e nas mesmas condições? A última era como
já disse a 2ª de CCAfricanos, naturais da província, desde que
tivessem arroz que chegasse para eles, mais às bajudas e aos
filhos estava tudo bem, adaptação natural.
A outra companhia de
Paras há que esclarecer que ao tempo pertenciam à Força Aérea
estavam aquartelados na Base Aérea de Bissalanca no mesmo local
que os aviadores, era fácil cada vez que se deslocava um heli a
Gampará, ou passava perto, levar carne fresca ou mesmo peixe.
Quem tem amigos não morre de fome….
Dei pois uma ideia da qualidade deste “resort”, e da forma como
logo no início da comissão nos proporcionaram uma situação que
teve como principal efeito dar-nos cabo do canastro, até pelo
tempo excessivo, comparando com as forças anteriores em que aí
nos mantivemos.
Posso recordar que quase todos os dias enquanto
lá permaneci houve que evacuar alguém.
Sobre tudo isto pesava um
anacrónico sistema de abastecimento por via fluvial que
normalmente nos enviava como prioridade aquilo de que não
necessitávamos.
Assim se estivéssemos com falta de cerveja, a
lancha trazia granadas e munições e vice-versa.
A actividade operacional desenvolvida pela companhia foi intensa
no que toca a patrulhamentos planeados de forma a evitar que os
guerrilheiros pudessem destruir o nosso objectivo que era de
manter sob o nosso controlo as populações desta zona da Guiné.
Vejamos o que consta oficialmente da nossa actividade
operacional enquanto permanecemos em Gampará:
Todos os dias, um ou mais grupos de combate, patrulhavam desde
as imediações das três tabancas existentes na zona, até a áreas
bem a sul da posição que ocupávamos.
No aquartelamento, estava
sedeado um pelotão de artilharia e à semelhança do que já
fizéramos em Mansoa, aproveitávamos os patrulhamentos para
treinar o apoio de fogos da artilharia.
Tudo se passava de forma
simples e muito expedita. Cada boca-de-fogo estava normalmente
colocada num dos três vértices do triângulo.
Cada uma respondia
ao máximo número de tiros que o seu sector possibilitava.
Os tiros estavam marcados em cartas de tiros sobrepostas aos mapas
existentes num sistema de quadrícula em que cada intersecção das
abcissas com as ordenadas era um tiro designado por uma letra e
um algarismo. Assim pedir um tiro era quase como jogar à batalha
naval (na teoria).
Em termos de contactos só temos duas histórias que merecem ser
contadas.
Mas antes voltemos a recordar como o tempo passava
lenta, lentamente.
Da forma do costume de manhã a seguir ao café
o cerimonial da bandeira seguida de uma sessão de GE, que
terminava normalmente num jogo de brutebol, em que metade do
efectivo equipava com quico e a outra metade, sem.
Ao lado, o
arame farpado que nos separava dos “turras”.
Assim se passava
meia manhã, pois no final tínhamos o ritual do banho ao ar livre
em cuecas e chanatas.
"...
Debaixo da estrutura improvisada, íamos
manejando um pequeno pau, misto de rolha/ torneira, regulávamos
o fluxo de água que brotava do bidão de 200 litros assente num
estrado suportado por 4 troncos de palmeira erguidos
verticalmente e que nos proporcionava o luxo de uma coisa
chamada banho. ..."
Debaixo da estrutura improvisada, íamos
manejando um pequeno pau, misto de rolha/ torneira, regulávamos
o fluxo de água que brotava do bidão de 200 litros assente num
estrado suportado por 4 troncos de palmeira erguidos
verticalmente e que nos proporcionava o luxo de uma coisa
chamada banho.
E não fora o facto de quase toda a gente ter
começado a sentir as incómodas lesões de pele que em Angola
designávamos por “flor do Congo” até podíamos dizer que não
estava mal.
As refeições poderiam constituir um marco importante
de cada dia se as ementas fossem no mínimo decentes.
Mas não
víamos o aproximar da hora do rancho como um período que nos
desse uma alegria nas longas 24 horas que tinha cada dia.
E o pior é que ao almoço instalava-se um calor sob as coberturas de
zinco de cada habitação que nos fazia odiar particularmente
aquele momento.
Apesar disto conseguíamos amenizá-lo pois havia
sempre uma mesa de King onde com 2 jogos conseguimos passar duas
horas entretidos.
Normalmente tínhamos ao lado um rádio com
gravador de fita e apreciávamos também as músicas em voga.
Quão
longe estávamos de tendas com ar condicionado como fui encontrar
em Angola nas nossas forças da MONUA em 1998.
Como seria bom ter
a RTPI e esses maravilhosos aparelhos que dão pelo nome de
telemóveis e que nos permitem contactar para qualquer parte do
mundo especialmente para os nossos entes queridos.
Outro
problema com que se nos deparávamos era a necessidade de lavar a
roupa.
Em Mansoa o problema resolvia-se através das simpáticas
lavadeiras que já acostumadas ao rodar dos sucessivos Batalhões
tinham nessa actividade uma maneira de aumentarem os seus magros
proventos e também de recolherem informações que seguramente
passavam ao inimigo.
Aqui em Gampará este apoio logístico não
estava institucionalizado e se para muitos soldados esta
situação não dava grande preocupação pois em última analise,
sabão e água e mãos à obra e o assunto resolvia-se.
Fiz por isso
a minha prospecção e depois de algum trabalho foi-me presente
uma mulher já dos seus 40 anos com uma história algo complicada
como era normal entre a gente como a que vivia naquele
aldeamento.
Havia ligações com a guerrilha, pois a zona tinha
estado debaixo do controlo inimigo praticamente desde o início
da insurreição.
Neste caso também havia guerrilheiros como
parentes e certamente baixas que levavam a que as relações entre
o militar e o civil não pudessem deixar de ser tocadas por estas
envolventes.
Mas apesar destas condicionantes lá estabeleci um
contrato que só não corria melhor porque a Maria Berliet, pois
era assim como a conhecíamos, não possuía ferro de engomar (nisto
o nosso soldado era mestre, encontrava nome para tudo e aqui à
semelhança das nossas viaturas pesadas de frente espaçosa e
grande caixa de carga, a Maria, de forma notória mais forte do
que as restantes mulheres da aldeia, realçava pelos generosos
para choques e por um traseiro bem empinado e apertado nos panos
que era mister usar, pelo que sugeria efectivamente neste
conjunto uma inegável comparação com a viatura pesada com
estávamos equipados).
Mas voltemos á roupa.
Com a minha boa
vontade lá lhe prometi um ferro de engomar coisa que aconteceu
algum tempo depois.
Há distancia recordo a felicidade da Maria
quando a promessa se tornou realidade.
Vejo nos olhos do meu
neto o mesmo brilho quando lhe trago uma mota nova.
Passei a ter
roupa lavada e passada o que me fez aproximar um pouco do
paraíso.
Pena foi que os sonhos da Maria que estavam ao nível do
ferro de engomar continuem por cumprir passados que foram mais
de 40 anos e as Marias da Guiné continuem a ver morrer os
parentes umas vezes nos tiros que de vez em quando se vão
trocando mas mais das vezes por falta de condições sanitárias e
outras que a propaganda do PAIGC não se cansou nunca de anunciar
que iria corrigir quando chegasse a libertação.
As noites eram
um pouco mais movidas do que os dias pois o programa decorria de
acordo com as condições de luar ou com um contínuo fluxo de
informações que nos ameaçavam com possibilidades de ataques ao
aldeamento por efectivos da ordem das centenas de combatentes o
que acontecer bem nos poderia submergir qual tsunami do Pacifico.
Felizmente não aconteceu na altura se bem que em 73/74 algumas
zonas foram visitadas por elevado número de efectivos inimigos o
que causou alarme e problemas onde tal aconteceu.
Por norma nas
noites de luar eram propícias ao deslocamento das forças
inimigas.
Nessas noites, antes de recolhermos aos aposentos
passávamos algum tempo nas trincheiras onde testávamos os
procedimentos defensivos simulando as diferentes dificuldades
que enfrentaríamos em caso de ataque real.
As tropas que nos
precederam em Gampará, tinham sofrido vários ataques, pelo que
experiencia de quem os tinha vivido dava para tirar as ilações
que nos permitiam partir para possíveis correcções de
procedimentos.
"...
Nessas noites era vulgar que aquartelamentos
situados à nossa volta fossem atacados em sequência sendo bem
audíveis o fragor das explosões e visíveis os clarões que ao
longe uniam terra e céu...."
Nessas noites era vulgar que aquartelamentos
situados à nossa volta fossem atacados em sequência sendo bem
audíveis o fragor das explosões e visíveis os clarões que ao
longe uniam terra e céu.
Agarrados ao rádio íamo-nos inteirando
dos pormenores que infelizmente quase sempre incluíam baixas da
nossa parte.
Por vezes o inimigo andava na nossa zona e então
era o very light que coloria o céu, muitas vezes sinónimo de
início de ataque.
Lembrava-me de Deu La Deu e respondíamos com
os nossos very lights ou com granadas iluminantes de morteiro
que nos permitiam ver com clareza o que se passava muito para lá
do arame farpado. Afirmávamos que estávamos atentos e prontos a
responder à letra.
Entre os dias em que acompanhava os grupos
que saíam em patrulha e aqueles que me cabia ficar a descansar,
eu e todos, íamos aguentando um tempo que nos parecia ser de
algum desperdício pois que sentíamos que face às condições em
que vivíamos as nossas qualidades físicas se iam deteriorando de
dia a dia.
Uma tarde fui alertado pelo graduado de serviço para
uma situação de emergência.
Um soldado da companhia de
artilharia, saíra da zona protegida, pela rede de arame farpado
e tinha caído dentro de um poço.
A companhia vinha solicitar
ajuda para uma situação que não era de admitir.
Pelo que me
lembro dois soldados dessa companhia resolveram sair de dentro
da área defendida para caçarem.
Não sei como, um deles era
portador de uma caçadeira de calibre 12 e imaginou que poderia
ali nas imediações matar umas rolas.
Se bem pensou melhor o fez.
Ultrapassou a rede mas de forma infeliz foi engolido por um
buraco surgido no meio dos arbustos, próprio de quem distraído,
andava a olhar para o ar a ver se via as rolas.
Pumba pelo
buraco abaixo.
Estreito e de paredes irregulares que lhe foram
aparando a queda mas que puseram um problema complicado para a
sua recuperação.
Por sorte na 38CC dois excelentes sargentos
tinham já curriculum nos Bombeiros dos Estoris, o Vieirinha e o
Mário Rui de Carvalho.
Com a solidariedade que os caracterizava,
ambos se dispuseram a descer pelo buraco adentro e a resgatar o
desafortunado moço.
Primeiro foi preciso despachar um ninho de
besouros que guarnecia a entrada e ameaçava aferroar quem se
atrevesse a penetrar naquele ninho de ameaças.
Feita a limpeza
não sei qual dos dois se aventurou na descida que seria de uns
bons 6 metros.
Penso que foi o mais pequeno e magro.
O que é
certo é que a missão foi levada a bom termo e nessa mesma tarde
um heli aterrou em Gampará e evacuou para Bissau um militar com
várias fracturas obtidas num passeio não autorizado mas que
certamente perdurará noutras memórias além da minha.
Padaria
de Gampará em frente o padeiro de Borba á direita 1ºcabo CMD
Mendes e á esquerda soldado CMD Balsinha
Um fim de tarde fui convidado pela rapaziada do 3º grupo para um
petisco coisa que muito estranhei pois o rancho geral, era pobre,
encomendas da metrópole não chegavam aquele “cu de judas “ e não
estava a imaginar que depois do episódio da caçada interrompida
e com as recomendações que na altura emitira que alguém da
companhia se aventurasse a arriscar coisa semelhante.
Entrei na
tabanca que servia de alojamento ao grupo e verifiquei que o
cheiro era excelente e que nos olhos de todos havia um brilho de
quem via finalmente algo no fundo do tacho.
Tive ocasião de
provar e comer uma excelente carne de porco cozinhado em cerveja
e apimentada a piripiri o que nos provocava uma agradável sede
que suavizávamos com a cerveja que tínhamos disponíveis nas
arcas frigoríficas (a petróleo).
O céu tinha descido à terra mas
eu tinha que esclarecer a origem daquele petisco. Chamei o
Comandante de Grupo à parte e perguntei-lhe como desencantara
tal pitéu.
Lá me foi dizendo que no dia anterior o grupo tivera fazer um
deslocamento em coluna auto e que a primeira viatura ao fazer
uma curva sem o poder evitar atropelara um leitão.
Que na aldeia
ouve muitos protestos por parte do dono do animal mas que depois
de estabelecido um preço justo para a perda o caso foi resolvido
a contento de todos o que nem sempre acontecia.
Aquela
celebração teve lugar porque se festejava o aniversário de
alguém que como eu tivera a desdita de nesse ano de 72, fazer
anos nesse magnifico SPA situado à ilharga do Geba/Corubal e que
dava pelo nome de Gampará.
Mas já chega de paleio e de queixas
que hoje quando anualmente nos reunimos dá gozo recordar.
É como
se estas recordações compartidas as carregássemos connosco e
quando as revivescemos, por momentos elas deixassem de pesar nas
nossas costas e aliviássemos o peso que elas nos vem fazendo
sentir desde aqueles tempos.
Se bem que na história oficial não veja relato desta acção ou
pelo menos está simplesmente descrita nos resultados obtidos
como sem contacto não posso deixar de a ela me referir ficando
sem saber qual o patrulhamento ofensivo em que está descrita mas
esta foi um patrulhamento muito mais “ofensivo” do que as demais
que neste grupo são referidas até porque houve contactos com
população afecta ao PAIGC e a distancia percorrida foi muito
maior do que todas as outras mencionadas como sem contacto.
Explicitando a península conhecida como Gampará tinha mais ou
menos o formato de um dedo ladeado, pelo Geba e o Corubal,
orientado da ponta à base segundo a direcção NE- SW com uma
distância de cerca de 10 kms e largura média de cerca de 2kms.
Todas as operações nomeadas como patrulhamento ofensivo foram
feitas dentro deste rectângulo de 20 kms quadrados exceptuando-se
esta e é por isso que a ela me quero referir pois nela
percorremos todo o dedo para penetrarmos nitidamente na área
onde o inimigo tinha populações a viver debaixo do seu controlo.
Depois do anoitecer de um dia anterior à data de 13setembro 72,
iniciamos o deslocamento sobre um trilho que saia do aldeamento
e dirigindo-se para SW seguia mais ou menos pelo meio da
península até ao seu final.
A operação seria mais ou menos
idêntica a uma feita meses antes pela Companhia de Paras que
também cumprira a mesma missão de protecção que nós estávamos
agora a executar.
O nosso pessoal estava muito mais atento a
todos estes acontecimentos de que eu.
Normalmente dava a atenção
que julgava que lhes devia dar e punto.
"... No entanto logo à
partida me foi dito que os paras tinham tido um azar do “caraças”
pois pisaram uma mina, sofreram 4 mortos com o macabro de um
deles ter ido parar acima de uma palmeira...."
No entanto logo à
partida me foi dito que os paras tinham tido um azar do “caraças”
pois pisaram uma mina, sofreram 4 mortos com o macabro de um
deles ter ido parar acima de uma palmeira.
A mina tinha sido
colocada no trilho que seguíamos o que causava naturais
preocupações entre todos mas eu como sempre não deixei de me
posicionar num dos 3 primeiros lugares, posto onde habitualmente
me deslocava e só daí saía caso pressentisse que ameaça inimiga
se poderia centrar sobre a retaguarda da nossa ”bicha de pirilau”
formação que normalmente adoptávamos.
Ao passarmos pela zona
onde se dera o incidente com os Paras chegou-me o passe palavra:
foi aqui que os Paras se tramaram e esta é a palmeira.
Já estava
acostumado a estes recados que me chegavam neste tipo de
situações mas ali não via outra maneira de progredir ao ritmo
desejado que não fosse por aquele trilho de modo que ao
amanhecer estivéssemos nas imediações de uma tabanca com
população controlada pelo inimigo.
E a melhor maneira de chegar
lá era de noite pois de dia seria a nossa aproximação certamente
notada o que nos tiraria a vantagem da surpresa.
Pois foi
debaixo destas interrogações que a coluna apeada se foi
movimentando e ainda não nascia a aurora quando nos apercebemos
que estávamos muito perto de cubatas o que nos levou a tomar as
preocupações tácticas inerentes.
"...
A marcha passou a ser muito
mais cuidada os eventuais ruídos suprimidos a tensão foi subindo
cada movimento era mastigado, controlado e executado para que
alguém exterior à nossa coluna não se apercebesse da nossa
presença...."
A marcha passou a ser muito
mais cuidada os eventuais ruídos suprimidos a tensão foi subindo
cada movimento era mastigado, controlado e executado para que
alguém exterior à nossa coluna não se apercebesse da nossa
presença.
Enfim o habitual nestas circunstâncias. O “passa
palavra” ia funcionando para que de forma oculta todos os
membros da coluna estivessem a par da situação.
Às tantas surge
a mensagem de “o Cacais tirou a cavilha do dilagrama” o que me
pôs em sobressalto pois de noite na escuridão da mata, lançar um
dilagrama é algo que tem de ser feito de forma muito
conscienciosa pois corre-se o risco de atingir os nossos
elementos.
Acontece que o Cacais vinha no fim da coluna e eu já
me estava a ver a ser embrulhado nesta delicada situação.
Convêm
aqui dizer que o Cacais era um moço de Vizela salvo erro era
bombeiro e poderia ser um dos soldados bisonhos referidos pelos
ingleses que em Portugal lutaram nas invasões francesas,
escolaridade mínima, cumpriu todos os requisitos para ser “Comando”
e até ali não tinha dado problemas, só que agora quando ouviu
falar em cubatas preparou o material com que combatia e adiantou-se
na preparação.
Com esta situação, tivemos que aguardar no local
até que os primeiros alvores permitissem repor a situação
anterior isto é meter uma nova cavilha no dilagrama do Cacais e
seguir “viagem”.
Aquilo que visualizámos ao amanhecer eram
efectivamente cubatas.
Apercebemo-nos que estávamos em presença
duma aldeia com população controlada pelo inimigo.
Com calma
aproximamo-nos dos aldeões que já estavam fora das palhotas e
encetamos um diálogo dizendo quem éramos o que pretendíamos, num
estabelecimento de contacto que permitisse ulteriormente trazer
estas populações para o nosso lado.
Enquanto decorriam estes
actos notei que subitamente um elemento desarmado desatou a
correr e escapuliu-se na mata que rodeava o terreiro da aldeia.
Era certamente um elemento inimigo que partia a dar sinal da
nossa presença.
A nossa situação aconselhava cautela para não
sermos surpreendidos o que motivou a tomadas das medidas
necessárias.
Fomos pois prosseguindo o trajecto que nos estava
destinado efectuando posteriormente o caminho inverso ao que
tinhamos percorrido durante toda a noite.
Inicialmente mais
rapidamente até atingirmos a linha de alcance da nossa
artilharia posicionada em Gampará.
A partir daí aproveitamos
para pedir-mos alguns tiros para trás de nós o que afastava ao
inimigo a possibilidade de perseguição e a nós nos ia dando a
confiança para utilizarmos tão importante apoio de fogo e que a
Companhia passou a ter como aliado importante a utilizar quando
a hipótese do apoio aéreo estivesse fora de questão.
Assim
terminamos esta acção diferente de outras em que a ROE (Rule of
engagement) era o disparar primeiro e perguntar depois.
Acontece
que do Cacais ninguém mais ouviu falar apesar dos convívios que
efectuamos anualmente.
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descrição:
Operação "Águia Errante"
A 38 CC continuou em Gampará até finais de Outubro 72,
regressando 3 grupos no dia 20 a Mansoa e os outros 2 em 31 pois
ficaram a dar instrução à CCaç4112.
A vida nesse mês e meio foi
mais do mesmo, patrulhas de protecção às 3 aldeias que estavam
debaixo do nosso controle.
As condições sanitárias do pessoal
continuavam-se a agravar, e o fluxo de baixas ao hospital
militar mantinha-se.
Foi pois com alegria que verificamos que no
fim deste longo período daria lugar a alguns dias de licença em
Bafatá? Por esta altura eu completava 4 meses de permanência na
Guiné, período mínimo para poder gozar as minhas férias anuais
fora do território.
Aproveitei pois para regressar à metrópole e
retemperar forças.
Aí tratei de me equipar nas áreas em que
senti que o que tinha à disposição era insuficiente,
nomeadamente na protecção anti mosquito para poder suavizar as
longas e duras noites dos matos da Guiné.
As férias passaram a
voar e ainda recordo o momento em que fechei a porta do
apartamento da rua de Diu.
O táxi esperava à porta, três saltos,
nos aeroportos de Lisboa, Sal e Bissau e acordei dum sonho bom
no meio de uma guerra dura e que ainda hoje nos marca e faz
lembrar cada pormenor vivido.
Á chegada grandes novidades me
esperavam.
A companhia movia-se novamente desta feita para
Teixeira Pinto.
Agora com malas e bagagens isto é tudo e todos.
Todo o trabalho e tempo gasto a beneficiar e a adaptar as
instalações deixado para trás, quase que não o aproveitáramos a
não ser o núcleo de Formação que mantivéramos em Mansoa.
Mas não
desistimos, iremos chegar a Teixeira Pinto e de pronto
iniciaremos melhoramentos no buraco que nos couber.