TESTEMUNHOS
E CONTRIBUTOS
38ª Companhia de Comandos — "Os Leopardos"
Curso de Comandos - A Fase de
Grupo
in ''memórias
do CAP INF CMD Victor Pinto Ferreira
Depois da fase de Equipa o
sentimento de todos que continuavam era influenciado pela
proximidade do final do curso. A fase de grupo era dedicada à
instrução específica de grupo mas também à continuação da
construção da Companhia. Assistimos no final da fase anterior a
Companhia constituída como um conjunto de cerca de 30/40 equipas.
Agora era preciso articular essas equipas em grupos de cinco
equipas. Para tal era preciso estabelecer os laços entre as
equipas e os oficiais que iriam comandar os respectivos grupos.
Nessa primeira manhã depois do fim-de-semana, o soldado Comando
Aleluia foi lesto a deslocar-se à caserna do grupo de sargentos
para comunicar que ao toque para a formatura da Bandeira os
instruendos deveriam deslocar-se a passo para a parada. Conforme
já tinha acontecido anteriormente pelo menos duas vezes desde o
início do curso tal era indicativo que a primeira instrução
seria de controlo do nível físico.
- Ora vamos lá a ver se engordei, resmungou o Sá sempre
preocupado com a linha, mal ouviu a comunicação do Aleluia. Está
descansado que com as trepas que apanhas todos os dias não podes
acumular banhas nenhumas respondi-lhe eu já a pensar que depois
do descanso do controlo RUD, seguiam-se as provas de potência em
que cada um tinha de dar o máximo nos seus quatro exercícios.
Em contraste com os restantes dias o Capitão Trovão do alto do
seu metro e …. e voz leonina avisou : hoje ninguém corre, toda a
gente deitada no chão e a descontrair. A companhia de instrução
ocupando todo o campo de futebol gozava esta facilidade que o
horário lhe concedia e imaginava que ainda não tinha terminado o
fim-de-semana. O cenário era algures na ponta da Ilha do Cabo ou
melhor na Ilha do Mussulo, local inolvidável onde os luandenses
aos fins-de-semana gozavam as delícias de verdadeiro paraíso
local. Ao fim de uns dez minutos de boa sorna o capitão mandou
as equipas de instrução medir as pulsações em repouso de toda a
gente. Seguiu-se a ordem de levantar para a primeira linha, e
preparar para execução do exercício de flexão de pernas.
- à minha ordem vão fazer 30 flexões de pernas em quarenta e
cinco segundos. Executam ao meu ritmo.
- Atenção começar!
- Um, dois …. Trinta.
- Deitar! Equipas de instrução tomam nota das pulsações finais.
O controlo continuou até atingir a última linha, finda a qual
iniciaram-se as provas de potência. Começaram nas barras
localizadas nos embondeiros, no canto mais próximo da parada,
todos os instruendos executaram em sequência primeiro as flexões
de braços depois deslocaram-se alguns metros e fizeram extensões
de braços seguiram-se os cangurus e por último os abdominais.
Cada instruendo esforçou-se por dar o máximo e alguns souberam
mais tarde que tinham ultrapassado a escala. Dali dirigiram-se
ao posto de socorros onde a equipa do sargento do Serviço de
Saúde os esperava para serem pesados. A finalizar, tendo por
fundo uma parede, a foto final para a ficha individual.
A instrução de técnica de combate preencheu o resto da manhã. O
Alferes Esteves apresentou o grupo de comandos, utilizando o
quadro preto como já fizera para a equipa. Mostrou a
constituição e funções desempenhadas pelas diferentes equipas
dentro do grupo. Mostrou como as equipas de acordo com a sua
numeração tinham responsabilidades específicas em áreas extra
operações. Assim havia quem estivesse encarregado das
transmissões, ou da navegação terrestre ou do material de apoio
para travessia de cursos de água ou apoio de fogos ou ainda da
alimentação. Cada sargento recebia assim um encargo extra além
do comando da sua equipa. A instrução continuou conforme norma
seguida desde o princípio, similar aquilo que actualmente se
chama “abordagem sistémica”, as matérias eram ministradas de
forma coordenada com a técnica de combate.
Perto do campo de futebol existiam duas estruturas em madeira
conhecidas por heli-paus que serviam para a primeira abordagem
da ficha dos helicópteros (neste caso o nosso Allouette 3). Uma
para exemplificar e treinar o modo de entrada no heli e a outra
a saída por meio de salto em profundidade.
Uma tarde depois do almoço o grupo foi levado para junto deste
equipamento e iniciou-se a instrução. No caminho para o local um
out door da acção psicológica fazia alusão à pressão externa que
Portugal sofria por parte das organizações internacionais. Ao
almoço a Voz do Comando tinha relembrado o início da luta em
Angola mencionando que a 15 de Março tinha começado o carnaval
na ONU.
Na cabeça de cada um de nós retumbavam as imagens que na
altura correram mundo com os sangrentos acontecimentos mostrados
fotograficamente em quadros que jamais iriamos esquecer…. Não era
por não nos apresentarem razões que perderíamos a vontade de
responder à letra à tragédia sofrida por milhares de famílias
portuguesas.
Por equipas treinávamos a entrada no heli pau, na sequência dois
(um de cada porta) a seguir o chefe de equipa e depois os dois
últimos que ficavam “à janela…”.
A saída seguia a seguinte norma
: - Portas, gritava o piloto logo seguido do salto dos dois
primeiros
Depois os dois seguintes e finalmente o chefe da equipa…
Tudo tinha que ser mecanizado para não haver atrapalhações nem
danos nos helis não esquecendo que o piloto muitas vezes contava
com o efeito do menor peso originada pela largada da equipa para
ter força suficiente para elevar rapidamente o aparelho.
Num dos dias seguintes logo pela manhã o heli verdadeiro
apareceu no CIC e rotativamente toda a Companhia de Instrução
fez o seu baptismo de heli e começou a ambientar-se a um
equipamento que muitos e bons resultados, traria ao emprego
operacional das unidades.
Nesta altura os trabalhos de estrada e as marchas rondavam os 15
kms só possíveis pelo aumento das capacidades físicas que os
instruendos apresentavam. A Funda continuava a ser local de
instrução preferido para a instrução de técnica de combate em
que fosse necessário utilizar os meios de fogo real à descrição.
Nesta parte final do curso foram várias as deslocações para esta
área de instrução para treinar os deslocamentos apeados e em
viatura conjugados com a reacção à emboscada.
Nos deslocamentos em viatura tudo começava pela designação dos
lugares a ocupar pelos cinco elementos de cada equipa com
especial atenção ao lugar do cmdt de grupo e dos lugares ao lado
do condutor. As viaturas em uso eram os UNIMOGS a gasolina (404)
sendo atribuído a cada grupo 3 destas viaturas. O treino de
reacção à emboscada contemplava no mínimo 3 situações
específicas de acordo com as viaturas que eram indicadas como
imobilizadas pelo fogo Inimigo.
A coluna formada por 3 Unimogs deslocava-se em velocidade
reduzida pela picada que da Funda serpenteava entre pequenos
muxitos e alguns tufos de mata mais densos para lugares mais
além do Panguila. No primeiro Unimog seguia o Alferes Esteves, a
primeira equipa e o aspirante Alves que desempenhava as funções
de comandante de grupo. Nas outras duas viaturas as restantes
quatro equipas. A mata tornou-se mais densa e depois de uma
curva mais apertada o Alferes levantou-se e fez dois disparos
para o interior da mata para um alvo semiescondido. O circuito
eléctrico foi accionado e vários petardos rebentaram em
sequência simulando os disparos do inimigo no início de uma
emboscada. De imediato todas as viaturas foram abandonadas e
iniciou-se a reacção à emboscada. Os ocupantes da primeira
viatura responderam ao fogo tentando descobrir e acertar nos
alvos que estavam algures na zona onde tinham rebentado os
petardos enquanto a segunda e a terceira equipa preparavam-se
para assaltar a posição. O aspirante coordenava através do Avp1
esta acção, dando indicação das posições onde se encontrava o
inimigo e qual o itinerário para abordar a posição e se possível
integrar-se no assalto. Em linha uma equipa assaltou e a outra
apoiou.
O Alferes Esteves depois do assalto terminado reuniu o grupo e
analisou a forma como tinha decorrido a acção assinalando os
aspectos a merecer correcção inteirando-se que todos tinham
ficado cientes.
O movimento continuou e os incidentes repetiram-se agora com as
emboscadas dirigidas para as outras viaturas da coluna.
Ao final do dia o grupo estacionou numa área ampla onde foi
possível relembrar o que já tinha sido exposto acerca do golpe
de mão e de forma didáctica treinar os aspectos principais.
Entretanto a viatura da alimentação fez a sua aparição dando um
toque de estranho a todo um cenário que estava a decorrer com o
se estivesse numa operação real. Finda a refeição retemperadora
de forças despendidas ao longo do dia, o Alferes deu as
indicações para que o grupo fizesse a aproximação a um objectivo
Inimigo e lançasse um golpe de mão. O grupo assistiu à ordem
dada pelo Aspirante comandante. Foi dada a localização do
objectivo, a natureza e extensão do itinerário, tarefas
específicas de cada equipa no golpe de mão e também no
deslocamento e sua preparação. Com a noite já adiantada com um
croquis com a representação da zona, o grupo iniciou o
deslocamento com as equipas em “fila indiana” e segundo a
numeração natural, o aspirante seguia junto da primeira equipa e
os elementos da terceira equipa fazendo a ligação com as equipas
respectivas. O Alferes Esteves seguia na frente, o Sargento no
final do Grupo e soldado Aleluia entre a segunda e a quarta
equipa.
O grupo embrenhou-se por um trilho que corria dentro de uma mata
fechada e que dadas as condições de visibilidade não permitia
outro tipo de itinerário. O silêncio imperava e assim foi feita
a primeira contagem. Os números quatro da primeira e da quinta
equipa contavam os passos informando o aspirante a cada
quilometro percorrido. Ao fim de uma hora foi feito um pequeno
alto e o passe palavra funcionou para informar da localização e
tempo /distancia para o objectivo. Mais adiante o trilho foi
interrompido por uma clareira que as equipas atravessaram
individualmente tomando os cuidados de segurança que esta
situação envolvia. Depois da ultrapassagem deste ponto foi
ordenado novo pequeno alto seguido de nova contagem. Uma breve
espera, retomada a marcha, durante cerca de três horas a
movimento decorreu sem acontecimento digno de nota, até que se
atingiu uma zona em que o terreno se apresentava mais ondulado e
separado por um pequeno riacho. O croqui indicava esta zona como
muito próxima da organização inimiga. Com calma, muito cuidado e
pouco barulho foi feito o reconhecimento necessário. As equipas
de segurança começaram o deslocamento para ocuparem os locais
atribuídos, enquanto as equipas de assalto se movimentaram para
a zona de assalto. Próximo a equipa em reserva. Depois de
ocupadas as posições o desencadear do golpe de mão esperou que
as condições de visibilidade permitissem o lançamento do assalto
com um mínimo de segurança.
Logo que a claridade foi suficiente foi iniciado o golpe de mão
pelas equipas de assalto e o olhar atento dos elementos de
protecção.
No final o Alferes fez as considerações que julgou necessárias,
apontando erros e omissões dando enfase a áreas que sabia serem
relevantes pela sua experiencia operacional.
Depois de um grande alto em que cada um aproveitou para
retemperar o estomago, o grupo reiniciou o deslocamento desta
vez para treinar os vários tipos de itinerário conjugando com
reacção a emboscadas e montagem das mesmas. A utilização da “volta
da pacaça” passou a ser um imperativo. A reacção às emboscadas
foi feita empregando o mesmo método já treinado no movimento em
viatura.
Ao final do dia estávamos no CIC preparados para comer à mesa e
dormir na cama algo que estávamos a precisar mas que não iria
acontecer nessa tarde noite… depois da 3ª refeição a instalação
sonora fez mais uma vez o anúncio de formatura da companhia na
prontidão de 3???...minutos
Em breve a companhia estava em cima das viaturas e saía á porta
de armas. Adiante virou à esquerda na estrada de Catete o que
nos admirou pois contrariava o trajecto normal quando saímos do
quartel. Passamos o Grafanil detendo-nos na picada que pelo
interior acompanhava a “rede” que nos limites cercava a cidade
de Luanda. Estava explicada a alteração… era a celebre “marcha
de agua” ultima prova física a que eram submetidos os candidatos
a “Comandos” antes da fase operacional. 25 Kms nos esperavam ao
longo da “rede” até chegarmos às imediações das praias que se
estendiam a sul da cidade. O ritmo era a super velocidade a que
eram efectuadas as marchas nos comandos, imposto pelo Capitão
Trovão que com a sua larga passada não dava tréguas a qualquer
tentativa de a abrandar. Pela meia-noite chegamos ao local onde
nos esperava uma refeição de saco, bem-vinda com algum descanso
que gozamos fugazmente. As viaturas apareceram novamente para
nos transportarem até à praia. Não era noite de fim de ano mas
íamos ter banho comemorativo. Aliviados de algum material
entramos na água atrás das enormes pernas do Capitão que com
água pela cintura já obrigava gente a mover-se em bicos de pés
para não ter direito a engolir alguns pirolitos. Se ao princípio
parecia que não nos afastaríamos das margens não demorou muito
em que atónitos verificávamos que entrando pela baía dentro cada
vez mais deixávamos para trás a segurança da margem. À nossa
volta toda uma serie de fenómenos acústico luminosos iam
acontecendo deixando-nos apreensivos imaginado quando e se algum
daqueles seres que à nossa volta se moviam resolvessem afiambrar
os dentes nos visitantes nocturnos que os incomodavam. Por certo
nada de isso aconteceu mas que houve valentes pirolitadas isso
houve e uns “piquenos” que se não fosse a solidariedade d´Uns
grandes teriam feito “buceo” nas águas pouco profundas que
sulcávamos. Pelas 06H00 já se avistava a margem e em breve como
croquetes preparados para ir para fritadeira arrastando a areia
colada na farda e corpo por uma GAM a preceito terminávamos um
período de instrução que ia dar lugar a um mais que merecido fim-de-semana.
A frase apetecida ecoou na instalação sonora …. Hoje é sábado,
amanhã é Domingo….
O regresso ao CIC estendeu dias e retoques finais foram dados.
Mais uma rotação dos oficiais pelos diferentes grupos deu lugar
a um último questionário sociométrico estabelecendo a
constituição definitiva dos diferentes grupos. Por desistência
do capitão instruendo o capitão Trovão foi apontado para
comandante da futura XXX… Companhia de Comandos. Era um bom
casamento alguém com experiencia e que acompanhou a instrução ao
longo do curso tendo por isso já um certo conhecimento do
universo que a novos comandos constituíam. Mas uma cerimónia de
eliminação retirou do nosso convivio elementos que já não
acreditávamos que pudessem ser eliminados… já nem na operacional
tomaram parte, sim que antes da cerimónia dos crachás ainda
íamos ser uma vez mais postos à prova. Até aqui tudo já tinha
sido julgado, a capacidade física, a técnica e a táctica mas na
realidade a capacidade psicológica ainda não estava totalmente
avaliada apesar dos tiros e explosivos que tinham silvado e
rebentado em cima de nós. Não era preciso meditar muito para ver
qual era a diferença entre ser Comando, sim porque tiros em cima
havia muita gente que os tinha sofrido mas… levantar a cabeça
apontar ao inimigo e não hesitar em apertar o gatilho naquela
fracção de segundo em que sem sombra de dúvidas disparamos tem
que ser testado e só então o Comando pode luzir o Crachat após
lhe ser perguntado em cerimónia solene:
- Queres ser Comando
- Sim, quero
- Então vai e cumpre o teu dever.
Por isso ainda uma vez rumamos ao norte e acompanhados de um
instrutor /monitor por grupo, uma carta/fotomapa uma bussola
cinco rações e pano de tenda no saco de bagagem, a missão
estudada e as ordens dadas. A um entardecer, fomos encaminhados
para cinco diferentes locais onde o Puma nos depositou e por
cinco dias enfrentamos pela primeira vez os nossos inimigos
tentando não cometer erros, com a atenção no máximo e quando foi
caso disso carregamos nos gatilhos ou libertamo-nos das granadas
como tínhamos apreendido na instrução. Ao quinto dia num local
distante, aguardamos ansiosamente que o “puma” aparece-se
levando-nos de regresso à casa onde nos últimos três meses
tínhamos sido bem treinados, sofrido a transformação que nos
levou de soldados a verdadeiros combatentes a tudo preparados,
como enfrentar um Inimigo já veterano, movimentar-se à vontade
numa geografia para nós desconhecida em que o calor e a humidade
nos punham frequentemente à prova, com paisagens bem distintas
das europeias cheias de problemas que teríamos de ser mestres em
resolver.
Dois dias mais tarde com banda e fanfarra, vaidosos nos pequenos
detalhes que com que se uniformizaram para esta ocasião especial
cerca de cento e trinta novos “comandos” receberam o Crachat
prontos para cumprir o seu dever.
Estes escritos põem em relevo a capacidade de Portugal criar uma
Força capaz de eficazmente fazer frente às ameaças que a guerra
nos levantou, mercê de um grupo de militares excepcionais
animados de uma força de vontade e determinação assinalável e
que foram sendo capazes de ultrapassar reacções que a
concretização das suas propostas produziram. .
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