TESTEMUNHOS
E CONTRIBUTOS
38ª Companhia de Comandos — "Os Leopardos"
Livre Testemunho
'H.U. CAP.III PÁG.35 ANEXO 34
Doentes não devido a combate que baixaram ao H.M.10Nov73 -
Evacuado do H.M.B. para o H.M.P. ,via TAM, CAP. INF. CMD.
NM042048/63 VICTOR MANUEL PINTO FERREIRA
Apesar de ter anunciado na história da 38ªCC o final da minha
participação na actividade operacional da Companhia, a pedido,
vou aqui dar testemunho do que se passou até definitivamente ter
abandonado a Guiné.
Ainda em Guidage (30Mai a 13Jun73) fui acometido por um problema
de saúde que atempadamente tratado seria ”incha, desincha e
passa…” mas desta vez, fruto das circunstâncias, alem de haver
falta de géneros e de condições para alimentar o efectivo
presente, também os medicamentos habitualmente existentes no
Posto de Socorros tinham esgotado. Foi pois com apreensão que
quando me dirigi ao furriel enfermeiro (Dr) Coutinho e
comuniquei-lhe que precisava de alguma coisa para parar a “c…”
que me afligia, a sua resposta negativa, deixou-me a pensar que
teria de aguardar e “ver” se o assunto se resolvia por si ou se
teria de esperar até arranjar os necessários comprimidos. Enfim
no meio de todo aquele reboliço alguém mais acima não estava a
fazer o seu “trabalho” e eu que estava ali sitiado teria que
aguentar… já não era a primeira vez que por culpa de outros
sofria as consequências, relembro o episódio da minha evacuação
4 anos antes, no leste de Angola (ferido devido ao rebentamento
de uma granada armadilha), por indisponibilidade dos helis… ter
sido obrigado a percorrer durante 8 horas, numa maca improvisada,
as “chanas” do Luacano às costas do meu Grupo de Comandos.
A situação, sem os cuidados necessários foi-se agravando e foi
com muito esforço e sacrifício que cumpri daí a dias o
itinerário apeado Guidage Binta, local onde consegui a medicação
susceptível de reverter a situação. De Binta seguimos para
Bissau. Na realidade a situação inicial melhorou mas
paralelamente outros sintomas apareceram que me obrigaram a
contactar o Hospital Militar de Bissau. Tive que realizar exames
radiológicos e na preparação para um deles em Brá, por perda
abundante de sangue nas fezes fui obrigado a ir às urgências
ficando internado. Durante mais de dez dias fui tratado a
penicilina, tornando-se-me perceptível que os médicos não tinham
consciência de qual era o meu mal, atacando-o com o que tinham
mais à mão. Por essa altura tinha marcado no calendário geral da
1ª Rep/QG/Bissau as minhas férias anuais. Resolvi pedir alta e
ir de férias numa tentativa de resolver na Metrópole a
recuperação que percebi que em Bissau dificilmente aconteceria.
Como é sabido ainda agora tais latitudes são propícias a um sem
número de endemias, algumas na altura totalmente ignoradas nos
compêndios de medicina o que o nosso (Dr) Coutinho me apontava
quando pedia licença à porta do gabinete ou no meio da rua e me
dizia:
- Meu Capitão, o Fulano está com febre, não sei o que tem, tem
que ir para o hospital é preciso um heli e assim mais do que uma
vez pessoal foi evacuado não por efeito directo do inimigo mas
das mais variadas pragas em que as condições sanitárias das
bolanhas e matas da Guiné eram férteis e amiúde apanhavam um dos
nossos…
Arranquei de férias, passando o tempo até ao regresso, entre
laboratórios e médicos na ânsia de recobrar as forças que me iam
fugindo na mesma proporção que o peso ia baixando de forma
preocupante.
Regressei sem atingir a recuperação desejada, novamente no
HMBissau este não viu outra alternativa que não fosse a minha
evacuação em meados de Novembro 1973, para o Hospital Militar
Lisboa. Aí vou estar internado até Agosto 1974, (procurando
paralelamente a cura para a minha situação na medicina privada…)
altura em que regressei ao serviço no RI8, tendo o processo por
doença tido o Despacho: “a doença deve ser considerada
resultante do serviço de campanha” deixando os Comandos onde
tinha servido ininterruptamente desde Maio de 1968 até Novembro
de 1973. Durante o período em que ainda me mantive em Bissau a
38ªCC, partiu de férias para Bolama após o que foi cumprindo
diferentes missões dando mostras das suas capacidades quer em
operações, quer em instrução quer em missões de segurança.
Para trás ficou algo que tinha começado muitos anos antes desta
data, mais concretamente Outono de 1955, quando a bordo do navio
“Quanza” com nove anos deixei a família em Luanda e cruzei o
oceano durante dezoito dias para me dirigir a Braga onde iria
continuar os estudos. Ao olhar para o passado, revejo-me sem
lágrimas nos olhos consolando a minha Mãe, prometendo a mim
mesmo que um dia voltaria para viver no calor a que estava
habituado, à terra das barrocas vermelhas, às árvores que tinham
sido minhas companheiras…
Como estava enganado, só nos pensamentos que ainda me animam
vejo as terras que me fizeram sonhar na minha juventude. Poderia
terminar aqui este testemunho para não atormentar mais o meu
espirito mas quero que fique bem claro como vivi e porque vivi.
O ambiente que encontrei não foi de molde a reparar aquele de
onde tinha sido retirado. Braga na altura era uma pequena cidade
com características marcadamente provincianas e com uma
sociedade que me chocou nas suas clivagens que eu desconhecia em
Angola, no meu meio.
Um dia em Março de 1961, quando me dirigia para o Liceu situado
no outro lado da cidade ao passar no centro, local onde havia
dois ou três quiosques de jornais, fui chamado à atenção para
algo estampado nas capas - Graves acontecimentos no norte de
Angola tinham provocado milhares de vitimas causados pela sanha
assassina de “terroristas” que frementes de ódio mataram
ferozmente Brancos, Pretos e Mestiços pondo em pânico toda uma
região que no Mês anterior já dera sinais de alguma
intranquilidade com situações vividas em Luanda.
As doutrinas do Pan Africanismo de Nkrumah, da Negritude de
Senghor, da Africa para os Africanos e Europeus Go Home!
irrompiam com toda a violência na Africa Lusófona. Via com
apreensão o meu futuro e o da família.
A partir daí os meus sentidos passaram a estar sempre conectados
com esta realidade distante, isto no ano em que eu concluiria o
5º ano liceal. Nesse ano contava ir rever os meus Pais e Angola
mas a situação não aconselhara a que a viagem se realizasse. No
ano 1962 aconteceu e foi com esperança que visualizei o futuro.
Decorreram mais 2 anos lectivos e eu pensava que pelo menos o
ultimo seria em Luanda, assim não foi e eis-me em 30 Setembro de
1963 a ingressar na Academia Militar. De início sonhava com asas
e voos altos mas quedei-me por terra e na rainha das armas, a
Infantaria. Para esta situação tinham concorrido directamente a
situação que se vivia em Angola e o meu velho Avô Materno, meu
Padrinho, veterano da Grande Guerra em Moçambique que apesar da
distancia a que eu o via conseguiu que eu tomasse atenção às
suas palavras e conversas com que me brindava à lareira e me
contava pausadamente os acontecimentos vividos apontando-me a
Carreira das Armas como situação de futuro que eu poderia
encarar.
Terminado o tirocínio para oficial no verão de 66, e gorada que
foi a hipótese de me juntar aos paraquedistas eis-me em Angola a
cumprir a primeira comissão onde tive direito a baptismo de fogo
a preceito na picada do Canacassala região da Beira Baixa, Norte
da Província. Com regularidade tomei conhecimento da propaganda
Inimiga através dos documentos que capturávamos e das emissões
de Rádio onde os Europeus eram apontados como os fautores de
tudo que acontecia de mal e quando a sua presença acabasse o
paraíso ia-se instalar de novo em Africa.
A primeira comissão cessou num momento em que pela primeira vez
ouvi falar nos Comandos. No período intercalar que passei na
Metrópole encontrei o CIOE, Lamego e comecei a conhecer de perto
a realidade dos Comandos e daí a atracção por quem encarava a
Guerra como um desafio a ser vencido. O Curso em Angola
naturalmente apareceu com o início da 2ªcomissão como voluntário
a que se seguiu a 3ª também voluntário à frente da 38ªCC na
Guiné.
A descolonização surgiu com uma solução com que não estávamos à
espera. Não foi fácil receber a família de ambos os lados apenas
com os haveres transportados consigo. Toda uma vida esmagada com
a designação genérica de retornados como se tal fosse um estigma
de alguém que ao longo de seculos deu nome a Portugal em lugares
que hoje e ontem eram já paradigmas de civilização. Curioso,
onde estão agora os Países que lutaram contra os nossos
interesses e que tão descaradamente se atropelavam para nos
substituir? Como cuidam os nossos detractores de então de
validarem nos dias de hoje a sua decisão de lutarem contra
movimentos dentro das suas próprias fonteiras de povos que
aspiram a liberdade e autonomia?
Hoje cada vez mais à medida que a História da Humanidade se vai
estendendo para muito antes do início da civilização Agrícola
(10000 AC), torna-se realidade o facto de Africa ter sido o
Continente Mãe ou melhor Maternidade, onde a Humanidade surgiu e
daqui partiu em direcção ao Nascente talvez procurando o local
onde nasce o Sol (ou procurando uma nova Maçã que lhe permitisse
elaborar o seu Manual de Instruções) e fê-lo por várias vezes
como sabemos. Isto a propósito da propriedade dos espaços e
territórios. A corrida a que estamos a assistir agora, levando
Africanos a fugir em direcção à Europa, quarenta anos depois de
Africa lhes ter sido devolvida, contrasta com os slogans
esquecidos que os seus líderes gritavam aos quatro ventos para
mais facilmente agarrarem o poder nas suas mãos. Veremos se há
medida que os conhecimentos nesta área da História da Humanidade
se forem sedimentando as razões que nos obrigaram a abandonar as
terras onde estivemos cinco seculos eram justificadoras de tal
expulsão…
Termino estes desabafos, reafirmando que eu como muitos outros
Portugueses tive razões suficientes para entregar a cara à luta
e olhar o Inimigo olhos nos olhos, por isso sei que não desiludi
as visões que o meu Padrinho entendia para meu futuro nos frios
Invernos da segunda metade da década de cinquenta e nem a
daqueles com quem justamente servi Portugal, por três vezes em
cenário de guerra, assim houvesse forças para marchar na frente…
Voltar
Testemunhos da 38ª Companhia de Comandos