Elisabete Gonçalves
Amiga e testemunha da
38ª Companhia de Comandos
TEXTOS DA
ELISABETE PARA A 38ª COMPANHIA DE COMANDOS
Ao Soldado Desconhecido
"Tenho
a certeza absoluta, aquela que me dá os anos e a experiência,
que as divisas e dísticos que acompanham os Brasões de Armas das
diversas unidades militares não são tomados de ânimo leve a quem
por lá passou. Tornam-se, levados “à letra”, numa forma de
conduta e uma ordem inquestionável que damos ao nosso consciente
nas mais diversas situações a que a vida nos expõe. Desde um “
Nem um passo p’rá retaguarda” quando defendemos o que achamos
correcto, a um grito de “Mama Sumae” na disponibilidade com que
nos atiramos a tarefas titânicas, ou a um “Que nunca por
vencidos se conheçam”, quando em limite de esforço estamos
prestes a desistir. E há lá coisa mais poética do que um “
Acende em ti a chama de seres...!”, seja o “seres” lá o que for?
Professor, pai, pintor, ou até...Precursor? Ou um “Semper
Fidellis” na rectidão da tua própria consciência? Não, não há.
Sempre achei que os monumentos são um sitio de reunião e saudade,
mas não tanto de lembrança. O meu ao “Soldado Desconhecido” ,
mora dentro da minha personalidade, já que o acto que um deles
teve para comigo, marcou-me para a vida inteira.
Morei 5 anos num Destacamento do DGMG em Sacavém, ou Forte/Reduto
de Monte Sintra, se quiser ser mais correcta. Os túneis que se
estendiam por baixo de terra , repletos de material bélico,
obrigavam a um cuidado e protecção exponenciados. O portão de
entrada para o perímetro, mesmo ao lado da lendária Fábrica da
Loiça de Sacavém, ficava a um escasso metro da concorridíssima
Estrada Nacional. Dentro do perímetro exterior ficavam as
habitações do pessoal paramilitar e duas ou três famílias de
militares que lá moravam, na qual me incluía. O acesso ao Forte
propriamente dito, instalado num perímetro interior, fazia-se
tal como num castelo medieval, por um ponte levadiça e estava
sempre guardado por vários sentinelas e os seus inseparáveis
cães.
De cada vez que regressava da Universidade, tinha que esperar ao
portão que um sentinela me avistasse e viesse abri-lo com uma
enorme chave a que dava três voltas e corresse os ferrolhos
enferrujados. Isto demorava sempre uns bons 10 minutos, período
esse em que , tal como “ovelha em fojo, exposta à voracidade do
lobo” eu era brindada pelos automobilistas que passavam com as
mais variadas e horríveis injúrias, pois acreditavam, na sua
ignorância de que aquela era a minha casa, que eu estava ali
para uma “rave party” com os soldados, executando a “mais velha
profissão do Mundo”. A raiva não diminuía... nem os insultos,
mesmo quando aprendi a vestir as calças que levava na mochila ao
sair na paragem do autocarro, em vã tentativa de mostrar menos
pele do que uma rapariga de 17 anos gosta de mostrar, para calar
as invectivas. Nada surtia efeito...e eu não conseguia parar as
lágrimas de raiva que rolavam , misto de impotência e dor, na
mossa que aquilo me fazia.
Os soldados davam conta do que se passava e corriam, solidários
e apressados, a executar a abertura do portão, diminuindo o
melhor que podiam o tempo de espera, pois foi palavra que foi
passando entre eles sem que fosse preciso nada dizer.
Num dia particularmente difícil , em que um exame não me tinha
corrido nada bem, as lágrimas em catadupa fizeram com que um
soldado, jovem como eu ou pouco mais velho, depois de me abrir o
portão, vencesse a sua timidez e me dissesse, depois de me parar
o caminho em cara baixa, com a sua mão leve sobre o meu ombro, “
Espera. Não ligues ao que esses mal educados te dizem. Não são
importantes. E cá dentro ...és soldado como nós. Não te esqueças
do que diz este crachá...- disse segurando-o com a mão-...as
tuas lágrimas, são como o nosso material bélico, percebes? Não
as desperdices...em quem as não mereça!”
Assim fiz. Isso ajudou-me naquele momento e também vida fora de
uma forma que ele nunca imaginará. Fi-lo com as lágrimas, com o
tempo, com a vontade, a tristeza ou alegria, e...até com o Amor!
Não me lembro do seu nome nem sei quem era, mas é a esse “Soldado
Desconhecido” que presto a minha homenagem ...e a quem poria nas
mãos, sem hesitar, a minha Vida. Tal como tudo o que valorizamos,
também o confiar se dá...a quem, valorosamente, o mereça.
" QUE NÃO NO EMPREGVE EM QVEM NO NÃO MEREÇA"