Elisabete Gonçalves
Amiga e testemunha da
38ª Companhia de Comandos
TEXTOS DA
ELISABETE PARA A 38ª COMPANHIA DE COMANDOS
Gampará-Guiné Bissau
"Ainda
hoje, no desespero com que nos obriga a comer a última folhinha
de alface da terrina da salada, eu sei que é verdade que nos 730
dias que passou em Gampará, aturdido em trincheira com o quase
permanente arraial dos tiros de canhão sem recuo e mísseis (soviéticos?)
dos “turras”, a beber água de um poço profundíssimo que entupia
o sorvedouro com rãs e tão pouca que apenas dava para o rancho,
em que o banho era tomado debaixo do pingante do telhado de
zinco ,esperando de sabão e toalha na mão que viesse a chuvada
depois do aviso do trovão ao longe... que os parcos legumes
frescos que comeu se contam pelos dedos da mão.
Sei-o na raiva com que não deixa ficar nada que seja verde no
prato, mesmo que esteja já satisfeito...que é verdade!
Gampará ficava apenas a 60 km de Bissau e facilmente alcançável
rio Geba acima, tal como fez o navegador Diogo Gomes no ano de
1456, numa planura que faz sentir à altura de 6 metros as marés
do Atlântico. Um dos rios que são dele afluentes, o Corubal, faz
no subir de maré alta o estranhíssimo “macaréu”, que ao fazer
uma onda de quase três metros rio acima, obriga a saltar das
pirogas os navegantes de “água-que -deveria-ser -doce", (...mas
é apenas salgada e barrenta!) em verdadeiro pânico. A gigantesca
onda varre tudo à sua passagem, galgando margens até se desfazer
vencida por uma cota mais alta.
Do outro lado do rio mesmo em frente da península de Gampará
fica Porto Gole, onde em "zebros" foram buscar gatos bravos, que
os esfarraparam de arranhadelas na renitência de se verem
metidos em sacos de sarapilheira que antes estavam cheios de
batatas, para debelarem a praga de ratos que assolou a península
dos “Herdeiros de Gampará”...e a preciosa despensa da Companhia.
Durante dois anos, apenas interrompidos por uma breve visita à
Metrópole que mal deu para afogar as saudades, a Companhia de
Caçadores 4142 sobreviveu e resistiu, em surdez colectiva ao
tiroteio cerrado, à escassez de alimentos frescos, ao
racionamento da água potável, aos mosquitos e ratazanas, ao
paludismo, ao calor húmido e abafado dos trópicos,ao macaréu...sucumbindo
apenas às intermináveis barrigas de "lutador de Sumô” que lhes
fazia a cerveja, mesmo no contragosto de quem nada mais tem de
fresco para beber. Nas fotos que enviava ,quase sempre em tronco
nu , calções e grande bigode, invariavelmente a legenda dizia,
depois dos beijos e saudades: “Pareço o Gungunhana!”
O 25 de Abril apanhou-o de surpresa em Bissau enquanto saia do
Banco, fardado e de maleta preta com o dinheiro para pagar à
Companhia, que preparava o tão ansiado regresso.
Às pauladas que o puseram como Cristo , a “esguichar sangue”
cara abaixo, que lhe deu a turba eufórica de Guineenses que
festejavam a “queda do Império”, reagiu calado e aceitou-as sem
se defender em troca de proteger a mala contra o peito....com o
único “passaporte” que lhes garantiria o regresso.
Depois de dias a fio com músculos retesados da vigília, noites
de sonos interrompidos e nunca silenciosos no medo de ter a
garganta cortada à catanada, encontro agora explicação para os
saltos de pânico que ainda hoje, volvidos tantos anos, dá em
grito de “Que foi isto?!, quando no silêncio de uma casa na hora
de almoço...se deixa cair um garfo estridente, na tijoleira da
cozinha. Chama-se a isto , sei-o agora, “Síndrome de Guerra”!
Foto: 21ª CCMDS a transportar um ferido.