Elisabete Gonçalves
Amiga e testemunha da
38ª Companhia de Comandos
TEXTOS DA
ELISABETE PARA A 38ª COMPANHIA DE COMANDOS
Parirás na dor.
Nenhum de
nós cinco, bravos da 2044,embrenhados até à exaustão e suor de
canícula naquela mata de Cabinda...estava preparado para aquele
imprevisto.
O passo fantasma, silencioso e eficaz, deixava ouvir todos
aqueles barulhos da selva...até a mão em punho cerrado e
levantado do camarada que ia à frente nos fazer estacar e apurar
o ouvido.
Então ouvimo-lo nitidamente. Aquele gemido de sofrimento em
agonia que nenhum moribundo consegue calar. Posição de fogo e
...segue, que um Comando não retrocede.
Na dureza do curso no CIC de Luanda, disseram-nos preparados
para tudo. Tudo...mas não para aquilo, porra!
A cor de ébano daquela mulher deitada de costas, enrolada em
capulana e que transpirava de ais, também pagava pelos pecados
de Eva...e paria na dor!
Era nova, muito nova, quase uma menina. Como quase todas as
africanas pré -adolescentes, que naquele calor infernal e húmido
que “puxava corpo”, eram mães quando ainda deviam ter bonecas.
Enfim...costumes.
Só tivemos tempo de a rodear e eu, sem saber o que fazer aparei-o
para que não caísse.
-Que se faz agora? !-perguntou o Lopes, com cara de atordoado.
-Corta o cordão com a faca do mato pá, ou lá na tua terra nunca
viste nascer vitelos ou cordeiros?( O Araújo, que vinha lá das
terras da Beira Alta ,de família de marchantes e pastores,
percebia da “poda”, estava visto!)
-Deves pensar que o Campo Pequeno, onde fica a minha casa lá em
Lisboa, é alguma horta, não?
-Deixem-se de merdas e saiam-me daí! Parecemos os três Reis
Magos, a vaca e o burro, aqui os cinco à volta do menino Jesus!
Ainda vamos comer por tabela por estarmos aqui armados em parvos...e
de flanco aberto!
Era letrado o nosso Cabo, acho que até tinha andado no seminário
lá na Metrópole, porque aquilo que ele disse a seguir, naquela
calma imperturbável e nervos de aço que sempre ostentava e que
não tinha dado uma palavra no meio daquela confusão,(... e quase
juro que lhe vi uma lágrima teimosa a marejar os olhos),nunca
mais na vida me vai esquecer:
-Atentem no dia de hoje, malta. Obrigaram-nos a vir, mesmo sem
querer. Tivemos que matar, para não morrer. Mas hoje, hoje
rapazes, este nascer de vida aqui mesmo à frente dos meus olhos
limpou-me a alma e, se acaso os tenho,lavou-me os pecados...também.
Cabinda...Cabinda...tão viva na minha memória, ainda.
( Foto: CCMD 2044/ Angola/ 73-75)