Elisabete Gonçalves
Amiga e testemunha da
38ª Companhia de Comandos
TEXTOS DA
ELISABETE PARA A 38ª COMPANHIA DE COMANDOS
Já não há canções de Amor?
Pegou na tesoura de modista, de
gume férreo bem amolado, sem ter tempo sequer de se arrepender
ou chorar e zás.....cortou o rabo de cavalo grosso e sedoso que
lhe chegava ao quadril, de uma só vez.
Enquanto as lágrimas molhavam o papel de seda em que o embrulhou
com mil cuidados, como se de um recém-nascido se tratasse,
inabalável, despediu-se do cabelo que tinha prometido ao altar
da Nª Srª da Saúde, caso ele escapasse.
Nesse mesmo dia, véspera do seu casamento, levou-o sem que
ninguém visse ou tivesse tempo de lhe fazer perguntas a que não
quereria responder ( ...sim, como haveria agora de prender o véu
de noiva, com cabelo arrapazado e encaracolado, nada típico da
época, e justificar o sacrifício e afronta à vaidade de uma
idade, quase sempre sem razão?! Logo se via e pensaria que
responder, que só não há solução para a morte.) e depositou-o
aos pés da Senhora que morava no altar da igreja onde lhe diria
que sim para toda a vida, no dia seguinte.
Quando ele regressou da Guiné, naquele ano de 74, encontrou-o
magro da carência e nada parecido com um altivo Leopardo da
38ªCCMDS e, depois de muita teimosia e vencido pelo cansaço que
o atormentava, lá foi ao médico...que lhe deu a triste notícia
da sua doença pulmonar, ganha a custo de noites de cacimbo e
roupa seca no corpo depois de esperar horas infinitas na bolanha.
Contava-lhe das saudades que tinha tido dela, de como se riam os
camaradas do desvelo com que limpava a sua “costureirinha e
namorada” ( assim chamavam à sua arma, os soldados que dela
dependiam, em dias de guerra vida em perigo permanente!), porque
era nela pensava, sempre seu oásis em tempos difíceis.
Tinha acabado uma guerra...e começava outra, mais sinistra e
interior, daquelas que só se enfrentam, fantasmagóricas, com
paciência infinita e muito querer.
Durante um ano, um comprido e custoso ano que passou na cama do
hospital, recebeu todos os dias sem falhar um único, a visita
daquela namorada risonha, que depois de um cansativo dia a
costurar vestidos de madames, ainda tinha tempo de lhe levar uns
mimos, à custa de escasso dinheiro que conseguia poupar e horas
infinitas no eléctrico que a levava à outra ponta da cidade.
Adorava-lhe a personalidade, a beleza, a persistência, a amizade...e
aquele longo cabelo que cheirava a verde e a luz de sol que
nunca via. Amava-a.
Se em tempo de guerra há histórias de dor e perdas irremediáveis...também
existem as mais belas e duradouras histórias de amor que tenho
conhecimento.
Esta, destes dois amigos que tenho a sorte de conhecer, dura e
permanece (e eu sou testemunha!) enfrentando ventos, dias menos
bons e dificuldades, até aos dias de hoje.
Quem disse? Sim, quem disse...que já não há canções de Amor?
Quem?