Emblema da
38ª Companhia de Comandos
"Os Leopardos"


TESTEMUNHOS E CONTRIBUTOS

38ª Companhia de Comandos — "Os Leopardos"

 

Curso de Comandos - A Fase de Equipa
in ''memórias do CAP INF CMD Victor Pinto Ferreira

 

Se pudesse classificar por ordem de importância as diversas fases do Curso de Comandos certamente que a seguir à Fase Operacional escolheria a Fase de Equipa pelo seu “Q” de inovador, de diferente até de racional com que fui surpreendido em toda a sua dimensão. As palavras que entendi de Santos e Castro julgo que também apontavam nessa direcção. A razão tem que ver fundamentalmente com as significativas diferenças entre o modelo em uso neste escalão nas Forças Convencionais (a Secção de Atiradores), comandada por um Sargento e com efectivo ente 8 a 12 elementos e a nossa Equipa com sargento/oficial e 4 praças. Razões de ordem táctica/ funcional, ditaram tão profunda mudança, a meu ver totalmente correcta.

O princípio seguido nos Comandos defendia que um graduado naquele conflito e naquele terreno não tinha capacidade de comando efectivo sobre mais que quatro elementos. Tive ocasião de verificar como isto estava inteiramente correcto. Assim os grupos de Comandos articulavam-se em cinco equipas de cinco elementos cada, num total de 25 elementos. 4 Equipas eram operacionais, de comando de sargento e uma era a equipa do Comandante de grupo (Oficial) e que tinha como principal missão fazer a ligação com as outras equipas. As matérias desenvolvidas nesta fase de equipa eram basicamente as mesmas da fase individual, mas agora ministradas com a tónica da equipa, em que na técnica de combate cada soldado aprenderia a combater em qualquer posição da equipa. Paralelamente os soldados iam rodando entre equipas para que se fossem conhecendo mutuamente, o mesmo acontecia com os sargentos e os oficiais, de modo a que uma dada altura do processo fosse possível lançar os inquéritos sociométricos que iriam através das relações expressas (de aproximação e de repulsa) determinar a constituição de equipas baseadas nestes parâmetros. A fase de Equipa terminava com a prova de equipas, normalmente realizada numa fazenda perto da Pedra Verde. Nesta prova feita toda com meios reais, cada equipa constituída, realizava um percurso numa antiga picada onde tinha de resolver três situações tácticas a saber: emboscada à frente, emboscada lateral e emboscada à retaguarda, alem destas situações, tinha que passar por várias estações onde era confrontada com casos que iam da utilização de meios de comunicações (no meu curso apareceu o fabuloso TR-28) acções de primeiros socorros, travessia de zonas armadilhadas etc. em suma tudo o que se tinha dado até esta altura. No final da prova começou a fazer-se uma cerimónia que englobava a eliminação de elementos que não tinham condições para seguirem no curso e aos que continuavam imposição do dístico “Comandos”



A forma como tínhamos atingido a Prova de Fogo (fim da Fase Individual) e a ultrapassáramos deram-nos mais ânimo para prosseguir. Na mente de cada um bailava o grito de raiva que cada um soltou na pista de lama, à pergunta: - queres ser Comando? Quero, resposta dada de forma determinante com todas as cinco letras bem audíveis tal o entusiasmo com que celebrávamos a chegada até aquele momento.

Depois um merecido descanso de quase 40 horas a viver Luanda, o regresso ao Centro trouxe a rotina diária da Cerimónia da Bandeira e da GE no campo de futebol, seguida das normais actividades que envolviam as diversas matérias em instrução. Porem um dia algo saiu desta rotina. Terminada a cerimónia da Bandeira e leitura do Código Comando, o capitão Trovão depois de obtida autorização para seguir com a instrução comandou a companhia na marcha até ao local da GE e dispôs a formatura em xadrez. Foi ordenando a sequência das acções até que a companhia como um todo, estivesse em tronco nu e pronta para iniciar os primeiros exercícios. Com voz pausada, as ordens de acima, abaixo, 1,2, 3 e 4 faziam-se ouvir através da instalação sonora ao mesmo tempo que um monitor instalado num palanque em frente à formatura ia executando e demonstrando os exercícios que se iam seguindo. Sem aviso prévio, sons de disparos em rajada aconteceram vindos da frente da formatura provocando as mais diversas reacções. À medida que os efeitos dos disparos se mostravam perante os nossos olhos cada qual tentou reagir em conformidade com a situação vivida e entendida. Quase todos demoraram a entender o que se estava a passar. No mínimo, dois instrutores com experiencia de combate tomaram a atitude que a insólita situação exigia pois viram imediatamente alguém fardado a disparar uma G-3, sobre a formatura colhendo todos de surpresa. Com duas G-3, apanhadas do solo, tentaram abater o assassino que indiscriminadamente apontou e atirou sobre instrutores e instruendos. Naquela fase do curso o carregador da arma só tinha munições na carreira de tiro ou na técnica de combate. A tentativa de disparar falhou pelo facto de as armas não terem munições. Tal não impediu que um alferes disparasse em corrida e alcançasse o atirador desarmando-o depois de alguns “mimos” bem aplicados. No chão do campo de futebol um morto e vários feridos jaziam aguardando a chegada dos socorros necessários.

A história foi real e aconteceu com um soldado que tinha sido eliminado do Curso e que terminou a vida na ala de psiquiatria do Hospital Militar de Lisboa junto ao parque Eduardo VII.

Caramba, foi por pouco e eu teria sido atingido, lamentou-se o Cerqueira, apontando para o local onde à sua frente estava o instruendo mortalmente alcançado. O António estava desanimado e entre dentes balbuciou: - agora que já tínhamos levado com tantos tiros em cima, vem um filho da puta fazer uma coisa destas.

A instrução continuou conforme o horário secreto assinalava. Nessa tarde depois do almoço o grupo de sargentos dirigiu-se em marcha normal para o terreno que ficava entre a Messe e a vedação de arame que rodeava o aquartelamento a toda a volta.

Com um quadro preto o alferes Esteves começou a apresentação da equipe. Foi passando de assunto em assunto tendo para cada um, uma razão de ser que a todos nos fez entender e acreditar nas virtudes da Equipa. Primeiro o porquê de serem “5” homens, depois a apresentação de cada elemento referindo quais as principais tarefas/preocupações, o tipo de equipamento/ material especifico que cada um devia transportar de acordo com um Quadro Orgânico de Material (provisório, a aguardar aprovação e despacho) enfim referindo todo um sem número de porquês que nos bailavam na cabeça e que ao longo das próximas quatro semanas iriamos certamente ter respostas.

Terminada esta apresentação da matéria, começamos a pôr em prática os conhecimentos que tinham sido apreendidos e como era habitual, depois de alguma teoria, a seguir muita prática.

O alferes Esteves mandou que nos agrupássemos em grupos de cinco e iniciássemos uma progressão por equipas fazendo questão que cada elemento actuasse dentro da equipa de acordo com o lugar.

A nossa equipa manteve-se inalterada com os quatro elementos já nossos conhecidos a que se juntou um instruendo do recrutamento da Província, concretamente da zona de Cabinda. Sem grandes interrogações e demonstrando que claramente assimiláramos tudo o que tínhamos ouvido fomo-nos deslocando ao longo do itinerário indicado.

O António à frente ia mastigando os passos que dava preocupado com, com, com… o Sá a nº 2, vigiando a direita, eu a nº 3 chefiando a equipa, o Cerqueira a 4 e em último o Francisco que como era novo no grupo foi para o fim da fila. O terreno era bem nosso conhecido da fase individual pois era plano e comprido o suficiente para termos aterrado muitas vezes atrás das mascaras que volta não volta a equipa de instrução numa tentativa de embelezar o local disseminava para de forma pedagógica nos fazer entender como nos movimentarmos em presença de um inimigo que está atento e pronto a mandar-nos um fogacho mal nos descubra. O final da instrução trouxe-nos a sensação de segurança acrescida que uma equipa a trabalhar correctamente dava a cada componente. Imaginávamos já que nada nem ninguém seria capaz de nos derrotar pois era tal a confiança que cada um ia depositando nos restantes elementos como garantes da segurança de que estavam incumbidos. O final da tarde surgiu com um céu ameaçador de forte tormenta que o dia caminhando para o fim continuou a acentuar. Como muitas vezes aconteceu a essa hora o alferes apareceu de kiko e cinturão, sinal de que a GAM ou o combate corpo a corpo seria a instrução a seguir … foi GAM. Quando as voltas em passo de corrida em círculo começaram, grossas gotas de água caiam do alto e pouco bastou para que largos charcos ainda não esvaziados da última chuvada se enchessem e preparassem uma massa espessa e húmida de cor entre o preto e o castanho avermelhado que se foi colando ao uniforme e às botas. À medida que íamos em torvelinho, rastejando, cambalhotando, reptando etc, etc … etc a lama foi-se estendendo das calças para o dólman até chegar ao kiko. A trovoada escondeu o rebentar das granadas que o alferes e o Aleluia de onde a onde testavam a nossa capacidade de reacção. O fugir, o deitar, o desapareçam, sucediam-se ordenados de cada direcção onde surgia cada um dos três elementos da nossa equipa de instrução. Terminamos com os inesquecíveis movimentos de ordem unida que servidos no final nos preparavam para o regresso à calma com que se pretendia finalizar, segundo a pedagogia, este tipo de instrução. Por coincidência a essa hora a nossa Gloriosa Bandeira era arriada do mastro principal da parada ali mesmo ao lado. Ao toque de sentido toda a Unidade se imobilizou. Ao fundo na estrada junto à Porta de Armas, o Sargento Comando, comandante da Guarda mandara parar o trânsito que passava no arruamento fronteiro ao CIC e dizia aos condutores e ocupantes das viaturas que deviam sair das mesmas e de forma respeitosa aguardar que as honras que estavam a ser prestadas terminassem. Nós como estávamos com a G-3 quando tocou a marcha de continência, apresentamos arma, orgulhosos por estarmos ali naquele momento, vendo os panos verde e vermelho ondulantes descendo à Terra e o Sol escondendo-se para as bandas da Ilha. Depressa o firmamento tornou-se escuro como breu, sinal que um dia mais estava a acabar. Ao toque de descansar Unidade o alferes terminou com a forma usual com que findávamos as sessões de educação física:

Curso de Comandos
- Um salto bem alto, gritam Comandos e desaparecem em direcção à caserna.

Junto à Porta de Armas a enorme coluna de viaturas que se foi juntado de um lado e de outro acompanhada pelo irritante barulho das motorizadas de pequena cilindrada, vomitando gases e mais gases pelos escapes pôs-se em movimento. No local uma enorme nuvem de fumo subiu juntando-se às que mais acima se preparavam para continuar a bendizer com a água aquela terra.

A correr tentando esquecer a sensação incómoda provocada pelo frio húmido que me envolvia da cabeça aos pés só parei nos chuveiros, perto da nossa caserna. Aí como se fora uma viatura na estação de serviço a água jorrou-me pela cabeça abaixo enquanto tentava tirar a lama que tinha agarrada ao uniforme, às botas e ao corpo, para que não arrastasse tal carga para dentro da caserna. A instalação tinha como quase todo o CIC um seu quê de provisório, neste caso um telhado de quatro águas cobrindo uma superfície cimentada rectangular, vedada a toda a volta por ripas de madeira de pipo dispostas em altura, visando tapar de vistas exteriores, o espaço entre os joelhos e o pescoço dos utentes. Presentes vários outros instruendos que não tinham tido a desdita de ter recebido aquele tratamento digno de um actual Spa, estranharam quando mais alguns membros do nosso grupo se foram enfiando debaixo dos chuveiros dispostos regularmente ao longo das quatro paredes, repetindo os meus movimentos e não esquecendo também a lavagem da nossa inseparável companheira, a G-3…

O dia não acabou aqui. depois da 3ª refeição a instalação sonora repetiu as palavras que muitas vezes pelo cansaço e pela necessidade de nos sentirmos donos do nosso tempo não estávamos à espera:

- Atenção Companhia de Instrução! Tem 3 minutos para formar na parada. Um “trabalho de estrada” esperava por nós e ia-nos ocupar as próximas duas horas.

Acordo pelas 6 da manhã com o António a cantarolar e a impedir-me de gozar uns últimos minutos de preguiça pois como sempre o dia seria longo e trabalhoso… a manhã até começou de forma habitual nada no horizonte parecia apontar com novidades contudo nunca se sabia era a resposta que qualquer elemento da equipa de instrutores dava a qualquer tentativa de visualização do nosso futuro próximo. A Cerimónia da Bandeira, antecedida pela chegada das inúmeras viaturas que percorrendo os diversos bairros de Luanda faziam a recolha dos cerca de 250/300 militares da estrutura funcional do CIC, desembarcava nas imediações da parada todos os que se apressavam para estarem prontos às 08H00 para a formatura. Alinhados num dos lados da parada os elementos do corpo de instrução com o fardamento apenas autorizado aos Comandos em que sobressaiam a boina castanha e a camisola branca aguardavam a ordem do Capitão Trovão para em passo de corrida irem ocupar os seus lugares na parada. Seguidamente os elementos das “montras” deslocar-se-iam também para os seus sítios.

Alguns dos instruendos já aguardavam nos limites da parada o sinal do clarim para ocuparem os seus postos. Com os quase dois meses de curso alguns hábitos foram-se sedentarizando-se. Quão diferente era agora a atitude dos instruendos em relação aos primeiros dias em que os “pagamentos” por atraso na chegada à formatura eram quase gerais.

O António não deixou de escapar : - eh voilá l` équipe do Real Madrid est dejá preparé pour entrer dans le champ!

Oh pá vê lá se falas português pois se é para falares dos merengues bem podes estar calado que o nosso Benfica sabe tratar-lhes da saúde.
- Isso era no tempo da equipa maravilha com o Eusébio à frente e o resto dos imortais que conquistaram as duas taças… retrucou o Cerqueira que nem por ser da Guarda, deixava de ousar discutir bola a toda a hora. A conversa não adiantou mais pois a música que nos chegava aos ouvidos convidou-nos a rapidamente corrermos para o lugar que cada um ocupava no grupo de sargentos.

Depois de lido o Código Comando algo de inusual se ia passar pois o Capitão Trovão não deu sequência às acções que levariam a Companhia de Instrução da parada para o campo de futebol para a GE matinal.

Curso de Comandos

Curso de Comandos

O Capitão da Secção de Operações saiu da montra e depois de pedir autorização ao Comandante, puxou de um documento que começou a ler
Comunicado das …. Forças Armadas …

Forças da 3…ª.Companhia de Comandos em serviço na Provincia Ultramarina d… ….. conseguiram ultrapassar o cerco que a guarnição de ….. sofria desde o passado dia … de M… tendo desbaratado as forças inimigas causando-lhes ….baixas confirmadas e contribuindo de forma decisiva para uma melhoria da situação na região. Temos a lamentar nas nossas forças duas baixas……

O Comando do Centro congratula-se com mais este êxito das Forças Comando que com coragem e tenacidade tem demonstrado a validade da nossa doutrina de emprego....

Curso de Comandos
Depois deste curto mas significativo comunicado a CI deslocou-se para a GE. Nesta manhã nas conversas dos vários grupos de instruendos revelaram preocupação com a realidade exterior ao curso e deixou apreender que havia quem sonhasse com as acções que num futuro não muito distante estariam envolvidos. Em todo o caso esta era também uma forma de acção psicológica que dava frutos de imediato…

Com pompa e circunstância continuamos com uma sessão de transmissões em que o menino bonito, Racall TR28 nos foi mais uma vez presente com as espantosas capacidades de alcance e facilidade de utilização postas em relevo, associadas a uma fiabilidade que nos faria esquecer os ultrapassados equipamentos com que tivéramos que operar até então. Relatos de comunicações conseguidas do Leste com forças a operar no norte da Província eram por nós motivo de interrogação sobre tal possibilidade. Ainda estávamos na fase de esperar para ver e crer!..
A manhã terminou com uma aula de primeiros socorros em que para alem da teoria fomos ensaiando alguma prática numa área que em combate se torna verdadeiramente importante pois desde as pastilhas para as mais diversas maleitas, aos cremes e pomadas para aplicação para minorar as investidas da bicharada, até às injecções que é preciso aplicar a quem tem o azar de ser atingido por bala ou estilhaço, situações que há que dominar quando normalmente não há socorristas habilitados com o Curso de Comandos numa tropa que está em operações. Nisto como em tudo aparece sempre pessoal para estas andanças, fruto normalmente de experiencia prévia em anteriores ocupações.

Curso de Comandos

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Depois de mais uma feijoada com cabeça de porco ao almoço, a tarde começou com uma instrução de sobrevivência ministrada por instrutor veterano, sabedor dos muitos segredos que as diversas regiões de Angola escondem dos neófitos que querem sobreviver mas não tiveram o click de estarem nestas sessões ouvindo e praticando com tão interessante instrutor. Alguns no grupo acanharam-se quando foram convidados a provar os pitéus que nos foram apresentados. Um deles o Francês habituado à comida de plástico refilou e só a capacidade de adaptação induzida pelo Cerqueira com o seu quê de rude montanhês o fez ultrapassar os sentimentos que do estomago lhe subiam até à boca capazes de esvaziarem as tripas de forma não ortodoxa.

Mas nada como uma sessão de técnica de combate, que nos levou de seguida para o terreno plano existente atrás da Messe. Entramos aí numa nova área, a da progressão por lances. O feijão e a cabeça de porco tiveram que se acomodar, mais os peticos da sobrevivência… o alferes Esteves já tinha explicado, mas fê-lo mais uma vez…. Como a equipa debaixo de fogo deve progredir em direcção ao inimigo … o campo foi “embelezado” com um sem número de “hortaliças” espaçadas de forma que cada um dos cinco elementos da equipa tivessem um caminho para progredir apoiados nas suas mascaras. O designado chefe de equipa ocupava a posição central e durante os sucessivos lances encarregava-se de gritar para os elementos da equipa para que alternadamente se fossem movendo em corrida de mascara em mascara até à linha imaginária de onde se partia ao assalto. Com muito treino, com as correcções que equipa de instrução e os próprios instruendos iam introduzindo, ao final da tarde já se via um arremedo de progressão que para nós nos parecia fantástico. Tal não era a impressão do Alferes Esteves, nem do sargento Cunha e muito menos do soldado Aleluia, este que já tinha um excelente historial de recordações de ter estado debaixo de fogo das “costureirinhas” do MPLA tinha sempre uma bitola mais elevada para medir as nossas progressões.

Ao fim do dia o Aleluia não apanhou o Unimog que fazia a volta da Cuca, o Mini Moke do alferes Esteves não saiu do parque situado atrás da Messe e o sargento Cunha não saiu do bar onde com mais alguns instrutores e monitores fez as honras a pelo menos a dois pregos com batatas fritas e ovos estrelados acompanhados de dois finos bem tirados pelo “pinguinhas” Serafim. O Sargento muitas vezes quando a instrução se prolongava para a noite, jantava no CIC, porque morava nos confins da Samba e com o trânsito que se instalava ao fim da tarde na baixa seria quase impossível ir a casa e voltar para às 20H00 estar pronto a iniciar novo período de instrução. A sua presença não passou desapercebida aos oficiais e sargentos instruendos quando foram tomar a 3ª refeição mas tal também não foi motivo para grandes interrogações já que o ambiente de festa que se vivia no grupo de instrutores dava mais a ideia de uma qualquer confraternização de algum aniversário do que alguém que se preparava para mais um período de instrução nocturna.


Pessoalmente comemorava nesse dia vinte e tal anos passados sobre o dia que desembarcara em Luanda depois de oito dias encerrado no paquete Império da Cia Nacional de Navegação e pela primeira vez senti a magia das noites quentes e húmidas do mês de Fevereiro nessas latitudes. Os anos e os acontecimentos que se seguiram depois daquela data fazem parte da minha formação que me levaram a estar aqui neste momento, voluntário no Curso de Comandos.


À saída da Messe o chefe de curso de sargentos foi interceptado pelo Soldado Aleluia que em voz baixa lhe transmitiu que o grupo devia formar em uniforme de combate dentro de 10 minutos. Devíamos ser portadores de marmita e pano de tenda. Estes foram as ordens iniciais que nos encaminharam para a nossa conhecida Funda e os seus míticos mosquitos. A noite começou com o grupo dividido em equipas percorrendo um interminável trilho com algumas partes já nossas conhecidas.


Inicialmente a nossa equipa foi a primeira e com surpresa nossa, o nosso novo companheiro de que já vos falei o Xico de Cabinda voluntariou-se para ser o número 1 posição já difícil de dia e que à noite requeria cuidados redobrados para pelo menos ultrapassar os obstáculos que a equipa de instrução teria preparado. Ao fim duns cinquenta metros de cuidadosa progressão o Xico parou e agachado esperou que o António o numero 2 chegasse junto dele. O assunto era um arame que a 30 centímetros de altura atravessava naquele local o trilho que vínhamos a seguir. Com paciência o Xico tentou fazer compreender o Francês dos cuidados que devia ter quer ao passar este arame e como o devia sinalizar ao número 3 neste caso eu que vinha nas funções de comandante de equipa. Depois destas explicações como animal de caça se tratasse o Xico ultrapassou o arame e andou mais alguns metros no trilho. Passado pouco tempo o Francês juntou-se-lhe e ambos aguardaram que eu chegasse. Com igual cuidado o Sá e o Cerqueira ultrapassaram também o obstáculo e a equipa continuou a progressão ao longo do trilho. Não deve ter demorado um quarto de hora quando uma explosão que a noite tornou mais sonora e luminosa nos fez automaticamente voltar as cabeças para trás e adivinhar que alguém das equipas seguintes terá accionado a armadilha que tínhamos ultrapassado há pouco.


Depois da explosão o silêncio regressou à zona, sinal que não tinha havido danos no pessoal que tinha accionado a granada armadilha lá atrás.
- Certamente algum “pacação” com falta de sensibilidade e de saber tinha partido a loiça. Resmunguei eu, pesaroso por os nossos cuidados terem sido ignorados por tão pouco diligente instruendo.


A nossa equipa continuou a progressão com outros incidentes que fomos detectando ou reagindo conforme as circunstancias. O trilho corria agora numa zona de menos vegetação o que dificultava a sua percepção obrigando a equipa a gatinhar e através do tacto distinguir o caminho por onde o mesmo seguia.


Pouco antes da alvorada atingimos uma zona de vegetação mais aberta. Aí apareceu, não se sabe de onde, o sargento Cunha que passou palavra ao número 1 para fazermos um grande alto e aguardamos novas instruções. Na seguinte meia hora detectamos a chegada das restantes equipa ao local e percebemos que se instalavam em círculo ao redor de uma zona de área ajustada aos 25 elementos que na altura constituíam o grupo de sargentos.

 
O Sol não demorou a aparecer ultrapassando-se rapidamente o lusco-fusco iniciador de um novo dia. Na sua majestade os seus raios brilhantes foram-nos transmitindo o calor que a noite vivida dentro de um trilho nos fizera desejar. Cada um de nós foi-se preparando para ultrapassar um momento difícil do dia como se junto do inimigo estivéssemos. Não que tal não pudesse acontecer naquele momento e naquele local mas … naquele tipo de guerra nunca haveria de haver certezas mas ainda faltaria algum tempo para que uma das grandes batalhas pela conquista de Luanda se viesse a travar, mas até aí não tinha aparecido nenhum profeta que tal viesse anunciar. Silenciosamente como gatos que se espreguiçam e com umas lambidelas fazem a sua higiene depois de terem dormitado na sala, na garagem ou no telhado, cada elemento da nossa equipa e das outras ali ao lado, dobraram o pano de tenda e prenderam-no enrolado no cinturão. Aguardamos ali ainda largos minutos, até que entendemos ao longe o barulho do motor de um veículo que adivinhamos seria o Unimog com a nossa alimentação. Assim era. Por equipas recebemos o misto acastanhado de café com leite e casqueiro acompanhado de duas pequenas embalagens de manteiga e marmelada. Como sabia bem ter a certeza da chegada a horas da refeição seguinte, acontecesse o que acontecesse. Não imaginávamos ainda que apesar de toda a logística que dispúnhamos em Angola haveria muitas vezes em operações reais onde a primeira refeição não teria este requinte. A desilusão surgia ao metermos o braço dentro do saco de bagagem, (antepassado das actuais mochilas) e no meio de mudas de roupa, agasalhos etc. a mão, apenas conseguia agarrar uma lata de sardinhas “macho” e um naco de casqueiro duro, muito capaz de nos dar cabo dos dentes. Por café duas goladas de água fresca do cantil, que aquela hora ainda não atingira a temperatura da sopa morna.


Findos estes momentos que também faziam parte da instrução e no curso tudo estava previsto tudo era treinado até porque o Inimigo não escolhia a hora de encontro para terçar armas, começamos a instrução de um novo dia recapitulando tudo o que se tinha passado de noite, fazendo reparos onde as coisas tinham corrido menos bem e apontando as correcções que alem da doutrina, a rodagem do Alferes Esteves por uma companhia operacional aconselhava.


De seguida uma mudança total nas equipas, cada um de nós foi integrar um novo team e daí em diante e por algum tempo todos os dias havia mudanças.


Deslocando-nos em coluna por um fomo-nos aproximando da zona já nossa conhecida onde tínhamos improvisado uma carreira de tiro. Os meus novos companheiros mal tiveram oportunidade fizeram as apresentações. Dentre eles o John chamou a minha atenção pois tinha vindo do Sudoeste Africano e era originário da Ilha da Madeira. Deixava o Francês para trás, incorporando no meu grupo, alguém com raízes e cultura distantes das minhas. Mas os Comandos eram assim, diversidade cultural …

Curso de Comandos

Curso de Comandos


Nessa manhã com os alvos por inimigo, fartamo-nos de correr e aterrar atrás das mascaras para rapidamente levantarmo-nos, partindo para as seguintes. De forma aleatória um par ou um trio saía do chão e voava com a silhueta flectida, arma paralela ao chão e bem apontada à frente, fazendo fogo, parado ou em movimento até alcançar a linha assumida como de assalto, aí o comandante de equipa em funções gritava granada ao mesmo tempo que lançava uma ofensiva. Mal esta rebentava, cinco silhuetas galgavam os metros que os separavam dos alvos tentando acertar no que restasse dos alvos de combate iniciais. Esta era a forma como num processo evolutivo se davam os primeiros passos que visavam atingir uma perfeição materializada na capacidade das equipas reagirem pelo fogo e movimento ao mínimo sinal de presença do inimigo. A capacidade seria avaliada na prova de equipas, final da fase de equipa mas continuaria fase de grupo adiante cada vez que a(s) equipa(s) tivessem de reagir dentro daquela formação.


Durante mais duas semanas a instrução seguiu no CIC de acordo com o planeado, idas à Funda de dia e de noite, muito tiro lá, ou nas carreiras de tiro disponibilizadas aos Comandos em Luanda.


Numa formatura a seguir ao almoço o Capitão Trovão deu as indicações para a partir daquele momento passarmos a andar com o saco de bagagem às costas, transportando nele pelo menos, um pano de tenda, uma ração de combate e artigos pessoais. Só o tirávamos nos trabalhos de estrada, GAM, GE e CCC, em todas as outras instruções era companhia constante e foi maneira de nos acostumarmos a algo que era necessário em Angola, pois por norma as operações duravam em média quatro dias.

Curso de Comandos
Curso de Comandos

Até que o alerta chegou com as frases já nossas conhecidas mandando-nos preparar para mais uma saída para algures no Norte… nessa altura já tínhamos rodado com todos os elementos do grupo de sargentos, o mesmo acontecendo no grupo de oficiais, nos grupos de praças as rotações não foram tão longe pois era quase impossível atingir tal desiderato. Antes da partida para o “mato” houve questionário desta vez não foi sobre a acção psicológica nem uma categorização premonitória de novas eliminações, foi algo a que chamaram questionário sociométrico…. À pergunta de quem eram os sargentos que preferia para executar uma operação muito arriscada respondi: A, B, C e D com quem não queria trabalhar ou partilhar a tenda disse E, com quem gostaria de ou de … escrita num livrinho agrafado com várias folhas pequenas. Em cada uma, uma pergunta que depois foram na secção de instrução registadas numa grande folha de papel num gráfico com muitas bolas que foram á medida que mais dados iam sendo introduzidos revelando as equipas perfeitas, as assim, assim e os elementos sobrantes que apesar de terem qualidade para continuar no Curso, não se enquadravam nesta concepção para integrar uma Companhia de Comandos. Não seriam desaproveitados se conseguissem chegar ao fim, práticas democráticas antes do tempo até nisto os Comandos eram inovadores, mesmo no protótipo de computador de papel.


Aí estávamos outra vez no “mato”. O mesmo dispositivo, os instruendos ocupavam um largo círculo materializado pelas respectivas tendas 3P, fechado no lado contrário pelas restantes estruturas da companhia de instrução e respectivos apoios logísticos que normalmente começavam a sua implantação no local estava estabelecida a ligação à picada que nos trazia até aquele canto de Angola. Era espantoso ver como os Comandos ocupavam o terreno neste tipo de acampamentos, o à vontade com que o faziam, mesmo em operações, sabendo que na zona, as Companhias da quadrícula se entrincheiravam solidamente atras das redes de arame farpado apoiadas por abrigos e valas, conferindo uma ideia de protecção pouco convidativa para grandes aventuras no espaço exterior.


Não foi preciso esperar muito para sermos metidos num passeio que nos levou a calcorrear alguns quilómetros por nossa conta e risco numa prova de navegação terrestre. No segundo dia da estadia na Mussenga, a seguir à segunda refeição passamos pela área das cozinhas recebemos meia ração e dez munições e eis-nos nas viaturas com os toldos baixados e com companhia de elementos das equipas de instrução a iniciar um percurso auto de que não sabíamos qual a finalidade nem destino. Passado cerca de uma hora e meia já o Sol iniciava o seu declínio no horizonte a viatura que nos transportava foi fazendo paragens deixando que equipas de quatro instruendos apeassem da viatura que pouco depois reiniciava o movimento. Os que ficavam interrogavam-se qual o significado do que se estava a passar pois nada do que acontecia com os que nos tinham precedido era do nosso conhecimento. Por fim chegou a vez da minha equipa ser chamada e abandonar a viatura. Connosco um Capitão instrutor que tratou de nos afastar do veiculo para que as ordens que recebíamos não fossem ouvidas pelos instruendos que continuavam viagem. Sem muita explicação foi-nos entregue um envelope fechado e uma bussola e nada mais. O capitão e as viaturas que nos transportaram, desapareceram quase de imediato numa curva da picada. Parecia mesmo o fim da picada, não no sentido literal do termo mas na situação que nos deixava por nossa conta e risco num final de tarde em que teríamos quando muito uma hora de Sol. Estávamos numa picada, de cada lado alguns metros de capim ralo entremeado por pequenos arbustos, sinal da desmatação efectuada para rasgar aquele caminho.

Ao longe e num dos lados avistavam-se elevações de terreno, cobertas de vasta vegetação. No outro lado o terreno continuava plano mas também coberto por ampla floresta. Instintivamente começamos a andar para sair de junto da picada e chegarmos a um sitio que nos desse protecção das vistas de quem que não nós tivesse interesse em saber o que fazíamos ali. Eu tinha recebido o envelope e a bussola e as parcas palavras do Capitão que de forma sintética disse: - Senhor Brito, abra o envelope, siga as instruções, ao mesmo tempo que me entregava a bussola e desaparecia na sua viatura antes que eu pudesse pôr qualquer dúvida acerca das naturais interrogações que me assolavam o espirito….Olhei para os meus três companheiros, um era o Francês, o outro era o Xico de Cabinda e o terceiro, um Alentejano chamado Coutinho senhor de uma imparável calma e que repetia que para ele tudo o que decidíssemos estava bem.

Às vezes num grupo destes quanto menos confusão melhor e esta opinião apesar de reveladora de uma certa passividade no momento foi por mim bem-vinda. Abrigados debaixo dum pequeno arbusto abri o envelope que tinha pouca informação mas recordo, num pequeno croquis, uma direcção a seguir, uma picada paralela à nossa com um ponto marcado em cima da mesma e a seguinte informação: siga azimute XXX para atingir ponto Y. o problema parecia de fácil resolução em termos de navegação pois limitava-se a mandar-nos seguir uma direcção para o que utilizaríamos a bussola mas nada nos dizia a que distancia e que tipo de terrenos iriamos encontrar até chegarmos ao fim da prova. Imaginamos que não seria muito longe já que tínhamos cada um apena meia ração de combate o que apontava para que chegássemos ao local o mais tardar durante o dia seguinte.

De qualquer maneira havia que aproveitar o tempo de luz que ainda tínhamos à frente e por isso metemos os pés ao caminho para que saíssemos daquela área aberta onde quer homens ou animais selvagens rapidamente nos detectariam. Pois não esquecer que estávamos no Norte de Angola, não muito longe do Úcua, e ter encontros com o inimigo até podiam acontecer. Sem problemas atingimos a orla da mata que era simultaneamente a zona onde as primeiras elevações se situavam. O trajecto decorreu sem incidentes, o Xico Cabinda à frente depois eu com um olho na bussola, atrás de mim o Francês que ia entretido a contar passos e a cada 1000 mts ia dizendo mais um km, no final o Coutinho ia especialmente encarregado de ver se alguém nos seguia. Andamos cerca de 3kms até aquela posição mais uns metros pois aproveitamos para dar “a volta da pacaça” e emboscarmos o trilho que tínhamos seguido. Estava a anoitecer e como tal preparamo-nos para a noite que chegava. Tomamos a refeição em silêncio, enterramos as latas e movemos – nos com cuidado tentando seguir o nosso azimute. Mas como desconfiava a mata era impenetrável e não seria aconselhável de noite continuar.

O Xico que tinha experiencia do Maiombe deu o palpite que melhor seria aguardar que amanhecesse e tentar descobrir um trilho que seguisse a mesma direcção. Como o lugar não nos dava confiança continuamos a progressão subindo a vertente que se nos deparava na tentativa de atingirmos o cume da elevação. O movimento era cada vez mais difícil pelo que paramos a progressão e estabelecemos os procedimentos para passar a noite. Com um posto de sentinela ligeiramente afastado, marcamos os turnos de hora em hora, para não haver adormecimentos não desejados. A noite decorreu de forma fantástica isto é tudo nos parecia mexer à nossa volta, víamos pares de olhos para qualquer lado e de quando em quando o som de animais que se encontravam e deixavam escapar os mais variados urros que nos faziam encolher dentro do abrigo individual proporcionado pelo pano de tenda. Pelo meio da noite começaram a ecoar tiros isolados de um e outro lado da direcção que vínhamos a seguir.

Certamente seriam as outras equipas que tinham sido largadas antes e depois da nossa, que nervosas aliviavam temores que uma noite escura na selva tropical provocava. Pela madrugada o fogachal cessou sinal que as munições estavam contadas (percebia agora porque só tinham sido distribuídas 10 munições) e nós com uma noite mal dormida assistimos ao espectáculo do amanhecer naquele espaço. Os sons foram variando à nossa volta. O piar das aves anunciava a alvorada, mais tarde juntou-se o gorgolejar doutras espécies que foram subindo o tom em coro aqui e ali subitamente suspenso quando algo inesperado aparecia por perto, o silêncio absoluto era entrecortando pela algaraviada que desde os primeiros sinais de claridade se havia instalado, para novamente se estabelecer aquele clima de dialogo animal provocado pela chegada do novo dia. Os quatro preparamo-nos para iniciar o movimento. Com a G-3 à mão tínhamos tomado a 1ª refeição, um naco de pão com marmelada e uma lata de leite achocolatado, o pano de tenda que nos servira de colchão e cobertor durante a noite já estava dobrado e enrolado à volta do cinturão na zona dorsal, um ultimo gole de agua, olhares esquadrinhando cada uma das quatro direcções tomamos o dispositivo para iniciar o deslocamento.


- Eh Xico vamos começar a andar seguindo esta direcção, disse eu mostrando com a mão o sentido do deslocamento, mas se vires algum trilho de caça aproveita pois não podemos perder tempo aqui fechados dentro da mata, vou estar atento ao desvio do azimute se for o caso.
Ainda não tínhamos andado cinquenta metros e já o Xico com os seus olhos de caçador descobria um trilho que de seguro era utilizado pelas pacaças para se deslocarem dentro da mata. Como é natural fazia várias curvas, a direcção fazia um certo desvio para a esquerda da direcção que pretendíamos seguir. Andamos para aí uma hora dentro da mata seguindo o trilho até que o mesmo foi descendo por uma encosta suave que nos conduziu directamente a uma baixa cheia de capim e pouco arborizada e rodeada de matagal por todos os lados.
Desabafei:- já estava cheio de mata e trilho do pacaçal!


- Pois é mas ao menos tínhamos sombra e poucas hipóteses de termos maus encontros retorquiu o Xico, mas sem tempo de acabar de dizer o que lhe ia no pensamento.


– PACAÇAS, gritou ele no preciso momento em que um clamoroso tropel parecia vir para cima de nós qual onda gigantesca que se alevantasse da superfície do mar e aos quatro nos atingisse. Tão rápido como tinha gritado, o tropel pareceu inverter a correria passando a mover-se em direcção perpendicular à que seguíamos.


- Parecia uma largada de touros! Vozeirou o Coutinho dando sinal que não lhe tinha escapado o espectáculo que lhe recordou imediatamente as suas origens e cultura.


Por mim passo bem sem estes imprevistos e vamos mas é estar atentos porque uma cornada de um bicho destes manda um gajo para o galheiro e é que nem sequer temos um rádio para pedir auxilio.


- Vou estar atento, continuou o Xico, mas imprevistos podem acontecer.


Aproveitamos a baixa para corrigir o azimute enquanto o francês me fez saber que desde o início já tínhamos percorrido cerca de oito kms.


Voltamos a entrar na mata. Logo depois outra baixa maior que a anterior estendia-se até aos montes que avistáramos no início da caminhada, envolvidos por mata certamente similar à que acabávamos de deixar.


Com surpresa vimos que no terreno deveria haver uma picada pois era nítida a poeira que se elevava no ar, originada por duas viaturas militares em deslocamento. É de imaginar a satisfação que nos invadiu por ver aqueles que seriam os sinais de que a situação de estarmos por nossa conta e risco estava a terminar. À medida que nos aproximávamos distinguíamos perfeitamente a picada onde se podiam ver alguns instruendos que nos tinham antecedido, alguns curiosamente em trajes menores pareciam sugerir que estavam com saudades da praia.


Esta impressão desapareceu quando nos inteiramos das peripécias que tinham vivido e que passaram por ter tido azar no local escolhido para pernoitar. Tinham aterrado num local onde as matacanhas eram mais que muitas e tiveram as pacaças mesmo ao lado. A praia era o sinal que a desparasitação tinha começado mas continuaria com visitas quotidianas ao posto de socorros para extrair as mais resistentes, instaladas debaixo da pele ou das unhas dos pés de alguns azarados…. Quantos aos tiros foram muitas as histórias mas ninguém se feriu…


Ao final da tarde desse dia ainda faltava aparecer uma equipa das que tinha sido lançada em prova. No dia seguinte o problema mantinha-se e a preocupação era evidente entre nós pois conhecíamos os componentes do grupo em falta. Cerca das dez da manhã aterrou no acampamento 1 All 3 pronto para participar nas buscas ao mesmo tempo que por de trás das cozinhas quatro galfarros apareciam com ar esfomeado e cansados junto do vague mestre tentando desenrascar algo que lhes mitigasse a “hambre”…


Nesse final de dia a voz tronitroante do capitão Trovão soou na instalação sonora:


- Atenção Companhia de Instrução, a partir deste momento devem adiantar os relógios 12H00 isto é às 18H00 passarão a ser 06H00 da manhã pelo que o ciclo diário passa cumprir-se de acordo com este novo horário.


- Mai qu’est ce ça? Soltou o António ainda não recuperado das 12 horas que tinha vagueado pela mata e das experiencias vividas. Tal devia-se à sensação de “falta de rede” por não haver ligações rádio, verdadeiro cordão umbilical capaz de assegurar ajuda em caso de complicações, numa zona em que encontros com o inimigo ou animais selvagens eram hipóteses a considerar. O soldado Aleluia que estava perto apercebendo-se do teor do comentário não deixou de intervir: - ah senhor instruendo António julga que ser Comando é ter sempre as costas quentes? Vá pensando que cada vez que entrar na mata com rádio ou sem ele, muitas vezes até pode nem haver ligação, com mais gente ou menos gente, tem de estar preparado para todas as eventualidades e para isso o melhor é contar com as suas próprias qualidades … o António perante esta intervenção nem pestanejou e deve ter matutado se na realidade estaria preparado para assumir todas as consequências de se tornar comando…


Mas não demorou muito até o corneteiro ter dado o sinal para formar para a refeição. Alguns ainda traziam a marmita pendurada no cinturão ou metida no bolso das calças. O anúncio da mudança das horas já tinha entrado em vigor e a 3ª refeição desse dia passou a 1ª do dia seguinte pois é, as 19 passaram para as 7 de manhã e como tal foi servido café com leite, pão casqueiro e marmelada… muita rapaziada tratou de não se afastar muito da área das cozinhas pois há falta de melhor … toca de repetir o pequeno-almoço enquanto havia sobras. De seguida a Bandeira Nacional que tinha sido arriada momentos antes do anúncio do Capitão Trovão, por elementos da segurança ao acampamento, seria hasteada com pompa e circunstancia já à luz de projectores e dos faróis de viaturas convenientemente alinhadas para dar o melhor efeito possível. A noite apesar das alterações apresentou-se como habitualmente para cumprir o seu papel. Os façanhudos tiveram pontos negativos nas barbas que à revista não cumpriam a conformidade. Só o pessoal da penugem, escapou ao olhar atento e reprovador dos comandantes de grupo que com o rigor por norma, registaram os seus apontamentos. Seguiu-se a GE com os mais reguilas a aproveitarem os espaços com menos luz para abrandarem o ritmo de execução dos exercícios. Mas a voz do Capitão fazia-se ouvir e já parecia que nos conhecia a todos pelo nome: - Seu Jeuneca, vamos lá a esticar os braços, olhe que eu estou a ver, não queira ir fazer uma visita ao meu gabinete no fim da ginástica, berrou bem alto dando a entender a todos que pelo facto da iluminação ser diminuta não havia baldas para ninguém. O cross continuou com as habituais precauções da corrida ser feita em cima de uma picada esburacada em que qualquer desnível mais acentuado podia dar origem a uma torcedela num pé. Os exercícios finais, flexões e os abdominais com toda a gente deitado no chão poeirento e nada alisado deu azo a que o Capitão fosse acirrando a vontade dos executantes com algumas frases que nos fizeram sorrir, tais como: está tudo na praia a bronzear, vamos lá a aproveitar este magnifico sol, maravilhoso…


A noite (dia) continuou com técnica de combate em que a rotação com equipas de praças foi o procedimento normal até praticamente ao final da saída.


Por volta da meia-noite, intervalo para o almoço. Apesar do adiantado da hora o apetite de muita gente não diminuiu, tricando com vontade os nacos de pacaça guisados com batatas. Nem os copos de cantil quase cheios de tintol que os cozinheiros amigos á passagem no improvisado self serve, serviam de forma abundante os patrícios que eram reconhecidos… deixavam de ser esgotados até ao último golo… pois no pensamento havia quem imaginasse que a seguir ia para a tenda aproveitar as ultimas horas de escuridão. À uma, a formatura da tarde executou-se seguida de instrução que nos poria à prova para avaliar como executávamos nas diferentes matérias, as mais diversas tarefas sem qualquer ponta de luz. E para finalizar ao terminar a noite e entrando já na alvorada, o trabalho de estrada com o seu quê de fantasmagórico, em que faróis, vozes de comando, gritos de apoio, carro de som, Donne moi ma chance, e muita poeira se entrecruzavam no leito branco avermelhado do chão da picada, delimitado pelo capinzal que de um lado e outro se estendia até a orla das matas que seguiam o itinerário. Nesta altura do Curso, a distância a percorrer rondava os 12 kms, tanto no TE como nas marchas mas como vinha acontecendo desde o princípio do Curso, o seguinte teria sempre pelo menos mais 500 metros. O carro vassoura trouxe os que por razões físicas não aguentaram o esforço.


Com alguma interrogação esperávamos para ver o que seguiria, pois o cansaço acumulado pelos dois dias passados de forma singular, pedia algum descanso, mas às sete o corneteiro, tocou e formamos para a 3ª refeição. Um magnífico bacalhau à posta com batatas e ovo, brilhava nas nossas marmitas. O cansaço, o sono e a hora do dia, apostavam em fazer recusar tal petisco … mas já que tinha que ser….


Por fim fomos mandados repousar. Dormir foi difícil aquela hora já que afoitas moscas do sono? Seriam? Espetavam as trombas sugadoras em tudo quanto era pele, chupavam e chupavam e quando estavam cheias sumiam-se no momento em que o anestésico que não permitia perceber o que nos estava a acontecer deixava de fazer efeito e então acordávamos com a dolorosa sensação que algo nos estava a ferrar, mas não, já não estava e a bofetada que mandávamos em nós próprios convencidos que íamos acertar na “bicha” só nos fazia explodir a raiva que nos invadia… mas não tivemos muito tempo para gozar este pseudo sono. A figura do soldado Aleluia surgiu nas imediações das nossas tendas e deu os 3 minutos da praxe para formar para instrução nocturna. Durante uma hora equipados com óculos de soldador treinamos progressão em passo fantasma, onde foram salientados os benefícios de o fazermos naquelas circunstâncias pois as correcções podiam ser feitas pela observação directa dos executantes. Seguiu-se algo que acontecia para fechar certos espaços de tempo e que era a limpeza de armamento. Levada a preceito pois a revista no final tinha que encontrar armas sem o mínimo de poeira ou indícios de qualquer outra sujidade e muito menos produzir sons provenientes de partes da arma que não estivessem bem seguras. Durante esta azáfama normalmente o grupo era deixado por sua conta e risco até ser hora de alguém da equipa de instrução aparecer para passar a revista. Ora aconteceu que fruto de tudo que se ia acumulando algumas palavras trocadas em jeito de canção em voga foram suficientes para que dois maduros quase se envolvessem numa prova de agressividade que aos restantes espantou e deu motivo para certo entusiasmo….nem de propósito o período seguinte foi passado num questionário da Acção Psicológica e as respostas devem ter sido em consonância com o sentir daquele grupo e naquele momento.


Finalmente fomos dormir. Até às 6 (da tarde) ninguém nos incomodou. O toque da alvorada soou e as tarefas requeridas pela higiene pessoal iniciaram-se. Os seguintes quatro dias foram cumpridos no mesmo ritmo com este horário inabitual em que cansaço nos foi levando a procurar as reservas que de início não julgávamos possuir. Até que o calendário voltou ao normal, a semana maluca terminou e até tivemos direito a uma tarde descanso com ida à povoação do Úcua onde apreciamos uma boas Cucas ou Nocais e uns excelentes pregos no prato que nos fizeram recuperar a boa disposição e a força que os dias anteriores pareciam ter levado sumiço.


Num final de tarde toda a Companhia de Instrução foi concentrada numa baixa de terreno para receber uma das mais interessantes e importantes instruções que um futuro Comando podia receber. Tratava-se do reconhecimento sonoro do armamento inimigo. Durante esta acção os diversos tipos de armamento em uso pelo inimigo e pelas nossas forças também foram sendo apresentados sob a forma da sua assinatura sonora (como agora se diz) procurando que de uma forma geral cada instruendo ficasse com a capacidade de pelos diversos sons que lhe chegavam aos ouvidos pudesse distinguir se o armamentos era inimigo ou amigo que tipo direcção e alvo que estava a ser batido etc … pessoalmente após esta instrução e pelas diferentes situações vividas em combate tive aquilatar da real valia dos ensinamentos ali recolhidos.


Os dias seguintes foram dedicados a preparar as equipas para a avaliação que teria lugar no último dia desta segunda saída, a Prova de Equipas. A técnica de combate imperou, a rotação dos soldados instruendos com as praças continuou a processar-se e o preenchimento dos questionários sociométricos voltou a acontecer. Mais uma categorização dando-nos a entender que mais alguns companheiros nos iriam deixar. Na técnica de combate aproveitando a facilidade da realização de tiro real permitiu que as acções de fogo a nível de equipa fossem treinadas com todo o realismo possível. Um perito em explosivos fazia com que vários petardos rebentassem em sequência em locais em que alvos representando silhuetas de atiradores, de pé, joelhos ou deitado, simulassem com perfeição uma emboscada. Era iniciada por um disparo de um membro da equipa de instrução, que acertando num iniciador eléctrico fechava o circuito, fazendo que os vários petardos fossem rebentando dando a ilusão de que seriam disparos. Assim foram treinadas, emboscada à direita, à esquerda, atrás e à frente, golpe de mão com fogo in e mais tarde reacção a emboscada em viaturas. Noutras áreas como a GAM praticamente todos os gestos técnicos do combate tinham sido explicados e treinados, idem no combate corpo a corpo, enfim no final desta fase muito dos conhecimentos, técnicas e procedimentos dos Comandos tinham sido transmitidos e consolidados. No dia anterior à prova de equipas houve uma reformulação geral das equipas de praças e a cada uma foi atribuído um sargento, sinal que os questionários já tinham ditado o futuro da organização da nova Companhia de Comandos.


De madrugada um rebentamento estremeceu todo o acampamento e a ordem para formar ecoou nos altifalantes. O treino, as diferentes situações até então vividas, faziam que a reacção a estes estímulos fosse célere, numa confusão organizada, em que cada um sabia perfeitamente como se mover, com quê e em que direcção. As relações entre os diferentes instruendos que tinham iniciado o Curso sensivelmente dois meses antes já não era motivadas pelos diferentes grau de amizade ou de conhecimento prévio mas cimentadas por horas de penoso treino em que o esforço foi levado muitas vezes ao limite e em que cada um foi questionado sobre a forma como se queria ligar com os companheiros com quem iria combater. A CI estava prestes a deixar de ser um conjunto de soldados, futuros sargentos e oficiais, para passar a ser um conjunto de equipas formadas por cinco elementos em que um era o comandante (Oficial ou Sargento) e os restantes os subordinados.


As equipas estavam numeradas e por ordem iniciaram a Prova de Equipas. O itinerário, apeado realizava-se numa fazenda de café, ao longo de uma picada rodeada de pequenas elevações cobertas de arvoredo desde topo até sensivelmente o meio da encosta e por cafeeiros na parte baixa. Eram cerca de 5 kms num local ideal para conduzir uma prova como esta. De dez em dez minutos largava uma equipa depois de ter recebido um pequeno briefing sobre as acções a executar. Em sítios escolhidos elementos das equipas de instrução preenchiam as diversas estações prontas a examinar cada equipa em prova. As três mais importantes eram as que representavam três situações de emboscada (à frente, lateral e à retaguarda) e que com um realismo deveras impressionante punham à prova não só instruendos como os próprios instrutores. Os instrutores localizados em trincheiras situadas a meia encosta tinham por missão abrir fogo sobre os instruendos (com a segurança necessária para não atingir ninguém) logo que os tivessem ao alcance para tal.

A partir daí a equipa tinha que reagir pelo fogo e movimento progredindo em direcção ao local de onde tinham partido os tiros. O movimento era sustido por uma corda atravessada perpendicularmente à direcção do ataque. A corda destinava-se principalmente à materialização da linha de assalto ficando suficientemente afastada do local onde se situava a trincheira onde estavam os instrutores, procurando evitar possíveis incidentes nomeadamente o causado pelo lançamento de granadas de mão. O controlo de todas estas acções era feito directamente pelo Comandante da Companhia de Instrução que movimentando-se num jeep e com ligação rádio aos pontos principais ia tomando as decisões necessárias para que não acontecessem incidentes/acidentes devido à natureza e intensidade das acções de fogo. O final da prova era mais calmo com estações também importantes na verificação das capacidades das equipas, transmissões, minas e armadilhas, progressão por trilhos, primeiros socorros eram alguns dos itens analisados.


No final do dia todas as equipas tinham terminado a sua prova e a noite foi passada no local. Na manhã seguinte, já descansados, realizou-se a formatura geral em que foram eliminados os instruendos que face à análise dos resultados expressos nos diferentes registos e face à ética que normalizava a formação Comando não atingiram a qualidade exigida para seguirem adiante desta fase de instrução. As equipas consolidadas passaram a ser comandadas por um sargento (excepto as de comando de oficial), o dístico Comando foi entregue com o significado próprio desta distinção. Seguiu – se o regresso a Luanda onde nos esperava um merecido fim-de-semana….

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Trigésima Oitava Companhia de Comandos
A Sorte Protege os Audazes
Guiné 1972 - 1974

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