TESTEMUNHOS
E CONTRIBUTOS
38ª Companhia de Comandos — "Os Leopardos"
Curso de Comandos - A Fase
Individual
- Prova de Fogo (Continuação Parte Final)
in ''memórias
do CAP INF CMD Victor Pinto Ferreira
A fase individual terminava com
a Prova de Fogo, normalmente realizada nas minas de Mombaça,
localidade que ficava perto do Úcua e junto do Caminho-de-ferro
de Angola (linha que ligava Luanda a Malange). Esta prova tinha
muito de acção psicológica. Normalmente nos dias anteriores
ainda em Luanda no CIC, eram distribuídos panfletos pelos locais
habituais (camas, prato da refeição) com a indicação de que
iríamos ser submetidos a uma prova muito dura e difícil…, a Voz
do Comando, mensagem de acção psicológica habitualmente
difundida na refeição principal, abordava o mesmo tema. Depois
era feita a deslocação para Mombaça e durante a madrugada éramos
acordados por um violento rebentamento a que se seguia durante
todo o tempo de prova (umas horas) um constante matraquear de
tiros de metralhadora e de G-3, acompanhado de rebentamentos,
sons provenientes de todos os ângulos em redor. Os instruendos
eram concentrados numa “baixa” de terreno sem qualquer
possibilidade de saber o que acontecia à sua volta. Um de cada
vez, com intervalos de 2/3 minutos e encaminhados para um trilho
que percorria densa mata tropical e onde passariam pelas mais
diversas situações de combate
Ao vigésimo dia mais coisa menos coisa, recebemos ordens para
levantar o acampamento e preparar para regressarmos ao CIC. Como
as nossas divagações dos raros momentos que as tivemos se
revelaram tão erradas. Estávamos convencidos que a “Prova de
fogo” a tal que andava a ser anunciada prá aí há uma semana
afinal não ia ser de imediato, então quando seria? Na realidade
a frase “ nunca se sabe” ajustava-se plenamente à situação que
estávamos a viver. Enfim nunca se sabia quando tínhamos um dia
de folga, quando chegaríamos “à praia”, lá nisto a rapaziada da
Acção Psicológica sabia o que fazia, porque o fazia e como o
fazia. Arrumadas as “embambas” fomos brindados com as “gaoneras”
e “chiquelinas” do costume é já ali, vamos lá que as viaturas
estão aí à frente e assim sucessivamente até que embarcamos
mesmo e só paramos na parada do CIC.
Nova surpresa nos esperava. Foi anunciado um Domingo
praticamente na chegada ao Centro. Nem tudo eram más notícias.
Foram poucas horas mas deu para respirar. Desta vez fomos a um
lugar icónico o Baleizão, cervejaria esplanada junto à Fortaleza
e ao agora “Treme-Treme”. Ali e na presença de um velho colono
pude relembrar velhas memórias de tão vetusta relíquia guardada
com muito carinho no coração dos Luandenses que nos tempos
anteriores a 61 iam ali aos Domingos beber a sua Cuca que Nocal
ainda não havia, comer ginguba ou um prego e preguiçosamente
ouvir nas ondas curtas os relatos do campeonato de futebol da
Metrópole, saber das prestações dos seus Peyroteus, Matateus e
outras saudosas glorias que nesses tempos idos saíram do
anonimato levando no peito leões Angolanos ou a Cruz de Cristo
criando laços que uniam Portugal e Angola de forma tão sublime.
O regresso ao CIC aconteceu mais depressa do que na vez
anterior. Surpresa das surpresas em cima da cama mais um
panfleto sobre a tal “prova” e a instalação sonora debitou mais
um alerta de meia hora, com indicações precisas do que deveria
ser incluído no nosso saco de bagagem. Uma hora depois novo
alerta informado que o accionamento passava a 3 minutos.
Pelas duas da manhã estávamos formados e meia hora depois
passávamos a porta de armas. Rumo ao Norte, para os lados do
Úcua dizia-se.
No coração um certo aperto, os avisos foram muitos, medidas
anunciadas, siga as indicações de… não saia de. Etc., etc., até
um ateu tinha de aceitar tanta preocupação…
No trajecto ignorando as ordens dos instrutores e utilizando as
técnicas de silêncio já aprendidas fomos comentando e
relembrando as cautelas que devíamos ter em tão famosa prova. Eh
mamaué eh papaué! O choro canto das quitandeiras subia-me à
mente com tanta preocupação, como mãe preta pronta para
atravessar a estrada da Cuca na Sétima Esquadra, na cabeça
segurando os parcos haveres, nas costas o ultimo rebento e na
mão a sirigaita já espevitada…
Há que habituar o espirito a este diz-se que diz, diabolizar o
tamanho do monstro e construir com as nossas fracas forças a
lança com que vamos gritar Mamasumae e apresentarmo-nos frente
ao bicho dizendo que ali estávamos prontos… como crescer é
difícil as sábias tribos sabiam como praticar os rituais que
permitiam ao jovem passar a adulto caçador…. Ali em Belo
Horizonte e mais alem estávamos prontos para o primeiro embate,
o primeiro degrau de uma escada que nos permitiria chegar ao
momento de ostentar no peito o Símbolo do guerreiro adulto
pronto para grandes caçadas com os outros guerreiros da tribo.
Gloria aos anciãos que alguns anos antes magicaram, pensaram e
construíram tão famosa força.
Neste canto do Norte ao lado de umas minas? Chamadas de Mombaça,
chegamos ao romper da alva e sem muitas indicações fomos
encarreirados para uma frondosa baixa onde nos mantivemos até
começarmos a ser chamados um a um com 2, 3 minutos de intervalo
para caminho de que não sabíamos o início nem o fim.
Antes da primeira chamada um grosso rebentamento sacudiu tudo em
redor e iniciou-se um crepitar de metralhadoras de onde a onde
entrechocado por explosões mais pequenas, talvez granadas ou
petardos?
Primeiros avançaram os oficiais. Aos dez minutos o som
aterrorizador da sirene duma ambulância soprava a todos os foles
inquietando mentes que se incomodavam também com os berros e
uivos que chegavam aos ouvidos vindo das envolventes do local
onde estacionávamos.
Chegou a nossa vez.
- Adeus até ao mesmo regresso gritou o Cerqueira, a modos de ir
dar uma volta pela Serra. Desejámos-lhe boa sorte e que tivesse
cuidado e visse onde punha os pés. A seguir marchei eu. Dirigi-me
para o ponto de saída daquela mata onde um Auxiliar de instrução
de lista em punho tomou nota do meu nome e numero e indicou-me a
direcção de progressão numa altura em que me pareceu que a
fuzilaria redobrava de intensidade e as explosões se seguiam em
rajada.
- Porra pensei eu parece que cheguei em má altura. Ao longe,
picada abaixo ainda vi uma primeira vez a silhueta do Cerqueira
que ao desfazer uma curva sumiu. Curioso olhei para traz e notei
o andar descontraído do António que até me acenou, quando alguém
no meio de capim me fez sair da estrada e subir até a uma
falésia e utilizar uma corda horizontal para cruzar um vão que
se me deparava. O caminho do outro lado seguia por trilho
inclinado entrando numa mata bem fechada onde progredir só mesmo
no trilho…de onde a onde panfletos do MPLA com as mais diversas
ameaças e lá para o fundo rajadas de MG e rebentamentos
contínuos punham muitas interrogações na minha cabeça. Nova
chamada e a indicação para uma ligeira modificação do itinerário
para executar um salto em profundidade. Tudo normal sem
hesitação. Corro até aterrar numa rede de arame farpado que
cobria o troço da picada e onde dois instrutores davam indicação
de mergulhar por baixo do arame continuando em frente.
Diferentes sonoridades chegavam aos meus ouvidos. Rajadas de
metralhadora saídas ali bem ao lado, granadas que explodiam para
outro. Rastejo e sinto o odor entranhante de vísceras que
atapetam a área coberta pela rede, formigas grandes e pretas
passeiam pelo local, um dos instrutores dirige-se-me com algo na
mão e vejo que é um petardo de trotil utilizado em sapadores e
com ele a arder a mecha de cordão lento sinal de que em breve se
dará uma explosão. Raciocino rapidamente, espreito a maneira
como conseguirei dar conta do recado isto é atirar para bem
longe tal artefacto… aí vai ele no ar de imediato uma explosão…-
uma granada ofensiva que alguém atrás de uma arvore fazia crer
que o petardo rebentava (não podia pois não tinha o detonador da
escorva…) atinjo o fim da rede e recebo a ordem de sair dali
depressa … avanço mas não conto com outro instrutor que salta de
algum lado e de luvas de box acerta-me um pero que quase me
atira de costas para cima da rede… enfim lá sigo abananado com
tanta adrenalina que nem me surpreendo que na curva seguintes os
tiros que ouço, estejam a levantar poeira perto dos meus pés….
Assim
percorro vinte trinta metros debaixo de fogo disparado por
alguém com tiro ajustado durante a minha passagem naquela janela
aberta no trilho.
O trilho terminou mas a “festa” continuou, num terreno aberto
ligeiramente a subir um campo de mascaras judiciosamente
espalhadas foi cenário para enfrentar um inimigo hipoteticamente
instalado no final da direcção de progressão. Um tiro do
instrutor foi o sinal de partida para aquela sequência de
lances, quedas até ao assalto. Seguia-se um trilho batido que
foi correndo com alguma água até que outro Comando, outra
estação. A água já era lama e estava coberta com uma rede de
arame farpado… esta passagem foi como passar na farinha para os
panados, lama por cima e por baixo na cabeça, na boca, final com
um: - grite bem alto, quero ser COMANDO, aqui já não havia
duvidas quem chegava a este ponto já tinha demonstrado o QUERO
mas ainda faltava o POSSO…
Mais uma volta na picada um rolamento ventral por ladeira com
boa inclinação, uma travessia em cima de troncos de um vão
mediano e para acabar com as forças o transporte de um tronco
bem pesado por sinal ao longo de uma encosta apreciável finda a
qual um elemento da instrução ao lado de um quadro negro recebia
a apresentação de mais um instruendo
O quadro transmitia: apresente-se regulamentarmente…
Terminava ali a celebre Prova de Fogo era a segunda na ordem
cronológica das provas que se realizavam no Curso, outras ainda
se seguiriam a seu tempo lá chegaremos.
Com dois a distribuição de dois cantis de agua e com a muda de
roupa que connosco transportávamos tentamos pôr-nos mais ou
menos apresentáveis.
No final regresso a Luanda. No dia seguinte de manha às oito
horas formatura da Bandeira. Depois da leitura do Código Comando,
o COMANDANTE deu ordem ao Capitão Trovão inicie a cerimónia de
Eliminação…..
Mais uns quantos instruendos que não atingiram o POSSO… a
estatística ia-se cumprindo
ser comando era um processo de selecção continua, que começava
pela abordagem dos voluntários iniciais que ao tempo se
encontravam nas suas unidades de origem, onde eram submetidos a
testes médicos e psicofísicos e terminava oficialmente com a
entrega do Crachá Comando depois de terminada a fase operacional.
Neste processo posso adiantar que apenas 10% do grupo
inicialmente abordado recebia o tão ambicionado símbolo. Quero
isto dizer que de cerca de 2000 elementos que eram submetidos
nas unidades às provas para os Comandos, seriam dados como aptos
para frequentar o Curso cerca de 400 e destes chegariam ao
final, apenas duzentos. Mas o processo de selecção continuava
mesmo depois de recebido o crachá, e quantos elementos Comando
não foram expulsos por terem tido comportamento sancionável face
ao Código Comando?
Aqui termina a Fase Individual. Caso haja interesse manifestado
pelos eventuais leitores seguir-se-á a fase de equipa até até
até….
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