TESTEMUNHOS
E CONTRIBUTOS
38ª Companhia de Comandos — "Os Leopardos"
O Curso de Comandos
(Continuação)
(in ''memórias
do CAP INF CMD Victor Pinto Ferreira)
Da continuação da nossa história
vai-nos levar até ao final da “Prova de Fogo” que marcava o fim
da “Fase Individual”. Vamos então acompanhar os nossos 4
personagens principais e ver como cada um deles se vai
desembaraçando das sucessivas situações em que vão ser postos à
prova. Tínhamos então deixado às portas da Mutamba, a descer do
Unimog que os transportara desde o CIC.
: - Eh malta toca a marchar pois o tempo urge, disse eu aos 3
embasbacados que aterrados na Mutamba viravam a cabeça em todas
as direcções como que espantados com as “visões” que lhe iam
passando à frente. As mini saias estavam na moda, os tecidos
transparentes faziam imaginar os corpos de ébano que por debaixo
surgiam. O cansaço que todos sentiam ainda há uma hora como por
encanto dava lugar a uma sensação de certa euforia como se o “Ceu”
tivesse baixado à “Terra” diante destes quatro papalvos,
insaciáveis com tudo que viam.
Dois à frente e os outros atrás subimos a rua que liga a Mutamba
à Rua do Carmo passamos em frente à Igreja e num pulo estávamos
em casa do Tio Diamantino que nos recebeu de braços abertos e
facilmente nos arranjou aquilo que procurávamos, alojamento para
as poucas horas que tencionávamos dormir. Recusado
diplomaticamente o convite para jantar lançado pela Tia Emília,
eis-nos porta fora à paisana, prontos a apanhar um táxi, que nos
levou directamente ao “Vilela” restaurante afamado para os lados
da Cuca, pelo celebre bacalhau famoso em Luanda e arredores.
A refeição fez-nos esquecer as espartanas ementas do CIC, que
apesar de estar assente num local onde em tempos funcionou um
restaurante que acolhia quem nos anos quarenta queria dar um
passeio fora de portas e acomodar o estomago com uns bifes de
pacação e umas cervejas bem tiradas prontas a matar a sede a
quem daqueles lados se abeirasse.
Mas o tour mal tinha começado. Sorte que Luanda tinha táxis em
todo lado e a qualquer hora. Mesmo a tempo deixou-nos à porta do
Miramar para a sessão das nove e meia. Um filme a preceito, Alan
Delon e Cláudia Cardinal. Tiros, carros, velocidades e mulheres
bonitas.
O Francês estava impressionado. A paisagem da baia iluminada,
surpreendia pelos reflexos de luz esbatidos na água projectando
a mancha de coqueiros e pinheiros mansos que cobriam parte da
ilha. Mais perto, o cais onde tínhamos desembarcado há menos de
quinze dias, apontava-nos lá longe a terra de onde tínhamos
vindo, marcando-nos numa mancha de saudade o nosso pensamento e
desligando-nos por momentos da visão paradisíaca que estávamos a
usufruir. No intervalo foi a vez do Cerqueira e do Sá tecerem
elogios aos jardins que abundavam em todos os espaços do cinema,
dando mostras de grande parte da flora de Angola em que não
faltavam belos exemplares da Welwichia Mirabilis do Deserto de
Moçâmedes.
O filme acabou. Era tempo agora de nos movermos para outro
local. Outra vez num táxi e ala até ao final da ilha de molde a
não perder o espectáculo que um concorrido bar oferecia a horas
tardias da noite a fazendeiros donos do café, comerciantes e
porque não a militares a gozarem uns dias de descanso, longe dos
universos limitados do “mato” onde só a imaginação funcionava
pois a era da informação total ainda demoraria muitos anos a
chegar.
Acordei já o Sol ia alto com o sotaque estrangeirado do António
e a voz arrastada:
- Atenção Companhia de Instrução! está a formar na paragem para
apanhar o 45 que vai partir para a praia.
Rapidamente arranjamo-nos e partimos para apanhar o “Machimbombo”
que nos levaria directamente à ilha. O mar convidativo, iria-nos
proporcionar a recuperação das sovas que o nosso corpinho tinha
já levado desde que iniciáramos o Curso. O tempo e a água
estavam óptimos. À uma hora, sentados numa esplanada fazíamos as
honras a um bruto bife muito em moda naquele tempo em que nenhum
tipo de carne estava proibida por qualquer organização
supranacional… enquanto com preocupação olhávamos os mostradores
dos relógios para que à hora aprazada subíssemos para o Unimog…
- Porra, disse: o António parece-me que inda agora começou o fim-de-semana
e afinal já estamos outra vez de uniforme enfiado.
- Não sei porque te queixas, respondeu-lhe o Cerqueira, estavas
sempre a olhar para o relógio cheio de pressa com medo de perder
o autocarro.
- Eh pessoal não vale a pena chorar sobre o leite derramado,
agora toca a andar para a formatura. Já vamos atrasados e já
ouvi a voz do Capitão Trovão a mandar pagar o pessoal atrasado…
Não imaginávamos que à volta do fim-de-semana o corpo de
instrução com o capitão Trovão à frente estivessem à nossa
espera para mais uma desapiedada marcha, já a noite tinha
entrado na sua escuridão pela parada do Centro de Instrução de
Comandos de Angola…
Como afinal as nossas perspectivas não foram concretizadas….
Depois da cerimónia habitual de apresentação ao Comandante com
montras e tudo e de termos iniciado a marcha ao longo da que
estrada que ligava a parada à porta de armas, fomos
surpreendidos pela ordem do Capitão Trovão que do alto do seu
metro e noventa vociferou:
- Cmdts de grupo levam os grupos para os locais de instrução.
Imediatamente o Alferes Esteves deu as indicações que nos
levaram ao campo de futebol e aí dispôs o nosso grupo de
sargentos em formação em U. Principiou a explicar que estávamos
no hemisfério Sul e como tal tínhamos que nos saber orientar
naquelas circunstâncias. As desatenções foram sendo pagas com
flexões de pernas com a arma levantada acima da cabeça mas cada
um foi tentado a descobrir onde andava a Cruzeiro do Sul e para
que servia este novo astro para nós. Com os meus botões ia
pensando que bom mesmo era ter uma bussola que não tivesse
convulsões e que nos ajudasse a ir e vir a qualquer lado como
carreira regular de machimbombo se tratasse.
O Francês abria a boca de vez em quando indiferente aos
mosquitos que endiabrados andavam à nossa volta, alvos
apetecíveis, normalmente não presentes aquela hora no campo de
futebol do CIC. O Sá e o Cerqueira pareciam muitos interessados
na explicação meticulosa do Alferes mas logo no pequeno
intervalo que ligou a teoria com a prática pude verificar que os
dois tinham estado mais interessados em descobrir como se
poderiam orientar nos meandros do bar da ponta da ilha que na
noite anterior tivéramos de abandonar por expresso cumprimento
do horário de funcionamento. Na cabeça dos dois, duas bussolas
de último modelo, prismáticas de líquido, tinham-lhes prometido
que apontariam azimutes para qualquer lado desde o serviço fosse
convenientemente saldado.
Eu e o António tivemos que fazer das tripas coração para tirar
aqueles dois pasmados que não queriam arredar pé das portas do
estabelecimento, convencidos que iriam ter umas explicações
orientadoras de como se manobrava na noite africana. Finalmente
e perante a evidência que as duas beldades se esgueiravam pela
rua de trás num apetecível “espada” ao lado de dois entradotes
com ares de fazendeiros é que ambos realizaram que não tinham
bago para as duas esplêndidas “frangas”. A segunda parte da
instrução decorreu de forma mais pratica, toda a gente à procura
da Cruzeiro do Sul ou de um hipotético azimute que nos poderia
levar a vale de lençóis… os efeitos das quase 24horas em que
estivemos “soltos” faziam-se notar de duas formas: por um lado o
cansaço que transportávamos com o acumular dos dias que o curso
já durava acentuara-se mas psicologicamente algo nos tinha
aguçado o apetite para aguentarmos até nova saída,
visualizávamos as ganas que teríamos de abraçar uma realidade
que já nos estava a atrair: Luanda, o Sol as esplanadas, as
praias, o movimentos, os cinemas, restaurantes e bares em suma
tudo o que nos fazia esquecer os instrutores, instruendos,
trabalhos de estrada, GAM etc..
Pela metade da noite foi dada ordem para que individualmente
cada instruendo em passo fantasma atingisse a caserna sem
tropeçar nos elementos da equipe de instrução…o Sá e o Cerqueira
rapidamente e por trajecto invisível alcançaram o beliche e
mergulharam nas asas de Morfeu. Quando cheguei ambos roncavam
alto e bom som e eu apressei-me a fazer o mesmo. Não dei conta
do que se passou com o António mas os três verificamos que no
dia seguinte no início da formatura da Bandeira o alferes
Esteves, ao passar revista ao grupo quando passou junto ao
Francês indicou: - Instruendo António hoje vai ler o Código
Comando!
- Sim meu Alferes respondeu de forma seca o Francês.
Depois de içadas as Bandeiras e Flamulas, o Francês cumpriu os
procedimentos para a leitura do Código Comando e começou: -
Código “Comandou” o “Comandou” ama …
No final da formatura o alferes não descansou enquanto não
interpelou o Francês
Instruendo António, vamos ter que aprender português aqui não
dizemos “oui mon capitaine” nem “Comandou” mas sim COMANDO. O
António anuiu mas verificou que tinha dado azo a que de vez em
quando alguém no grupo de sargentos lembrava o episódio e no
gozo “oui mon capitaine” saltava no grupo….
Os dias seguintes foram passados numa rotina que nos permitia
ter três refeições a horário, formatura matinal (Cerimónia da
Bandeira), ginástica educativa no campo de futebol, muita
técnica de combate em que o prato forte era a progressão por
lances e quedas na mascara, marcha ou trabalho de estrada, dia
sim, dia não, (com a distancia a aumentar regularmente, ia agora
nos 7/8kms, incluindo controlo dos atrasados) e a GAM em que os
gestos técnicos do combate eram primeiro explicados pelo Alferes
Esteves e em seguida exemplificados pelo soldado Aleluia tendo
cada nova sessão a apresentação de uma nova técnica. Rastejar
nas suas várias modalidades, cambalhotas, quedas, gatinhar,
saltos de viatura, em profundidade etc. foram dando aos
instruendos cada vez mais à vontade para de forma automatizada
reagir à presença de um possível inimigo. Mais tarde também o
combate corpo a corpo apareceu. Golpes de defesa ou de ataque na
sua fase mais intuitiva permitiam a cada um ao menos moralmente
estar preparado para dar e ou levar…
À volta da parada os outdoors com Acção Psicológica iam mudando
as mensagens. Nas primeiras semanas de forma chocante as fotos e
comentários abordavam o início da guerra em Angola, com as cenas
de carnificina que se viveram nos idos de 61. Concorrentemente a
distribuição de panfletos no refeitório ou na caserna era diária.
Às refeições os altifalantes anunciavam: fala a Voz do Comando e
o Ta ta tam da 9ª sinfonia e o Donne Moi Ma Chance entranhavam-se
nos ouvidos impondo a sua marca. Pelo meio outras instruções e
actividades que nos agradavam de sobremaneira pela possibilidade
de estar parado imóvel sem aparentemente despender esforço
físico como as transmissões, os primeiros socorros ou melhor a
respostas aos questionários sobre a acção psicológica e pela
primeira vez uma categorização.
Um dia os altifalantes anunciaram: - atenção Companhia de
Instrução! A partir deste momento a Companhia está de alerta de
5 horas. Esta situação significa que a partir deste momento tem
5 horas para estarem preparados para uma saída prolongada para o
Norte de Angola. Recomenda-se que devem ser portadores de ……….
No dia seguinte o alerta passou para 2 horas. Antes da 3ª
refeição passou para uma hora. E às nove da noite passou para 3
minutos.
Nessa noite fomos para a caserna com a percepção de seriamos
acordados a qualquer hora e que iriamos lamentar as queixas que
de vez em quando exprimíamos por causa da maior ou menor dureza
da instrução e do tempo que já levávamos sem sair do Centro.
O Sá manifestava os seus dotes de decifrar o futuro tentando ver
os sinais que nos dariam a conhecer quais eram as intenções da
Direcção de Instrução. Pacientemente a cozinha e refeitório
foram espiolhados na tentativa de notar qualquer actividade que
lhe indicasse estar eminente uma saída para o mato. Idem na zona
específica do parque auto afecto à Companhia de Serviços onde a
movimentação de atrelados era o principal indicador de algo
anormal em curso.
Na caserna com os sacos de bagagem já prontos conferíamos se
tudo o que era obrigatório transportar estava dentro.
- Oh malta, digo-vos que não me parece que seja hoje que vamos
marchar. Rouquejou o Sá que continuou razoando na cozinha está
tudo a dormir, nem uma luz acesa. No parque auto tudo calmo e
sereno e se há algo que bula é a musica que vem dos lados do
musseque Rangel a perguntar o que que vamos fazer Domingo à
tarde, Passear por aí? Ver a cidade?
Comigo uma estranha sensação quanto à incerteza relativa aos
acontecimentos futuros impedia-me de meter-me na cama e dar azo
ao sono e cansaço que me invadia.
- Acho que vou mas é para choça com esse teu prognóstico,
ripostei eu. Ao lado o Francês não tugiu nem mugiu entretido que
estava a escrever um aerograma onde certamente contava, num
relato que já ia extenso, à madrinha de guerra, as ultimas
vicissitudes que tinha já passado desde que pusera os pés em
terra e largara o “Vera Cruz” já há quase três semanas.
O Cerqueira que não era de muitas falas perante aquele silêncio
do Francês, sentenciou:
- Oh António - escusas de estar tão atarefado com a escrita. A
minha prima não foge e amanhã tens tempo de continuar a escrita.
O Cerqueira para quem todas as raparigas da aldeia eram primas,
com conhecimento de causa e relembrando ter sido ele o
apresentador daquele afilhado sossegava o Francês que duplamente
desamparado via na madrinha de Guerra cuja direcção lhe fora
dada pelo Cerqueira uma boa motivação para ultrapassar os poucos
momentos de solidão que o curso concedia.
À meia-noite toda a caserna dormia. Ali ninguém notou que as
viaturas que faziam os circuitos de recolha do corpo de
instrutores e demais gente da unidade acabavam de passar a Porta
de Armas, paravam nos arruamentos que rodeavam a Parada deixando
descer os militares que acabavam de chegar.
Capitão Trovão deu a ordem para acordar a Companhia de Instrução.
Mais uma vez o coro do rebentamento das granadas ofensivas
fez-se ouvir e estremecer as frágeis paredes dos edifícios do
CIC. Pelo ar pequenos estilhaços iam dando nota da sua passagem
não só com o ruido característico mas também pelos vidros
partidos que os inseguros caixilhos deixavam de segurar. À
mistura rajadas de metralhadora dos mais diversos tipos ecoavam
transformando num ápice a calma noite que até aquela hora a
unidade tinha vivido num cenário de autêntico ataque … que
acordou tudo e arredores.
- A instalação sonora vomitou: - atenção Companhia de Instrução,
está a formar na parada … As luzes apagadas faziam notar as
primeiras silhuetas que equilibrando o saco de bagagem às costas
tentavam o mais rapidamente possível chegar à parada. Na nossa
caserna a resposta à chamada não teve a confusão das primeiras
vezes, rápidos todos estavam equipados e pelo caminho mais curto
e longe do poiso onde alguns elementos das equipas de instrução
se instalavam para controlarem os atrasados, atingiram o lugar
do grupo na parada e ordeiramente tomaram os seus lugares na
formatura.
Independente desta prontidão o Aleluia teve que controlar alguns
pagamentos que os últimos a entrar tiveram que pagar.
A formatura estava pronta e rendeu as homenagens ao Comandante.
O Capitão Trovão pediu licença e começou a chamar uma longa
lista de instruendos que mandou sair da formatura e ocuparem o
lugar de um novo grupo.
Interroguei-me qual a finalidade deste movimento que só ficou
esclarecido quando o Capitão Trovão se dirigiu ao comandante
dizendo:
- O grupo está pronto.
- São eliminados do Curso de Comandos estes instruendos acabados
de nomear. O Comando do Centro lamenta estas eliminações apesar
de reconhecer que todos deram o melhor do seu esforço mas não
conseguiram atingir os objectivos traçados para esta fase.
- Capitão Trovão mande sair os instruendos eliminados da
formatura…
As ordens foram dadas o grupo desapareceu sob o comando de um
sargento dirigindo-se para a área das instalações da Companhia
de Serviços.
Nós atónitos vimos o capitão apresentar a CI pedir licença e dar
a ordem de destroçar e regressar à caserna.
Recordei então diversos pormenores que todos juntos apontavam
para o que acabava de passar. Desde os primeiros trabalhos de
estrada e marchas que pessoal do controlo de instrução foi
anotando os dados dos instruendos que não conseguiam chegar ao
final, integrados na Companhia. Há dois dias ao final da tarde
fomos surpreendidos por mais um questionário ….
(continua….)
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