TESTEMUNHOS
E CONTRIBUTOS
38ª Companhia de Comandos — "Os Leopardos"
Fase Individual do Curso de
Comandos - CIC de Angola
(in ''memórias
do CAP INF CMD Victor Pinto Ferreira)
Depois da Prova da Sede seguia-se
a “Fase Individual” onde o objectivo principal era transformar
militares provenientes das mais diversas situações em autênticas
“máquinas” como agora se diz mas que na minha perspectiva
pretendia-se que numa primeira abordagem o instruendo fosse
exímio no uso da sua arma (s) capaz de reagir ao menor indício
da presença do inimigo independentemente das condições do
terreno, do clima, da própria condição pessoal e que todos os
que continuassem no curso atingissem patamar idêntico.
De um modo geral no fim desta fase o instruendo devia ser capaz
de reagir ao fogo In pelo uso da sua arma individual movendo-se
através de lances individuais e partindo ao assalto com prévio
lançamento de uma granada de mão (of), atrás disto deveria saber
progredir por trilhos (armadilhados) e em terreno aberto, cruzar
cursos de agua) efectuar com destreza todos os gestos técnicos
do combate e saber utilizar os meios de tms em uso alem dos
elementares conhecimentos de primeiros socorros.
Como exemplo desta capacidade aponto aqui um caso paradigmático
do elemento da 38ªCC que em Julho 1972 percorreu cerca de 5 kms
isoladamente até ser recuperado na sequência de um forte
contacto com forças do PAIGC na zona de Cutia, Morés.
Vamos então de forma ficcionada continuar a percorrer um Curso
de Comandos no Centro de Instrução de Comandos de Angola nos
meados dos anos setenta lembrando que na 38ªCC serviram pelo
menos 22 elementos que fizeram a sua formação em Angola.
A formatura da Bandeira marcou mais uma vez o início de um novo
dia. Um banho, muitos líquidos e um sono retemperador trouxeram
todas aquelas criaturas de Deus a uma realidade que escondeu
tudo o que se tinha passado nos dias anteriores. Nem mesmo
quando a meio da manhã o calor começou a apertar os instruendos
tiveram qualquer desânimo, apesar das sucessivas quedas na
máscara com que eram brindados na instrução de técnica de
combate. Até à exaustão, como num carrossel, passamos o resto da
manhã desse primeiro dia depois do Úcua, num jogo de
perfeccionismo inaudito, a atirarmo-nos para o chão, a
escondermo-nos atrás de um tijolo enfeitado com uns arbustos a
que pomposamente a equipa de instrução chamava máscara, depois
corríamos alguns metros para de forma violenta e brutal
aterrarmos com os joelhos e cotovelos no piso duro de areão, do
campo de futebol, e novamente nos “instalarmos” atrás da máscara.
Previamente o nosso Alferes com a ajuda de um quadro preto,
explicou-nos o que eram máscaras, abrigos e cobertos e depois
como iríamos constatar ao longo de todo o curso, a prática
substituiu a teoria, de forma a que as matérias ficassem bem
assimiladas. Tão bem que neste caso, de vez em quando,
instruendos houve que por falha de “travões” ou excesso de
voluntarismo aterravam com os queixos directamente no diopter da
G-3, daí resultando uma ferida concisa que normalmente
despertava nos instrutores alguns comentários jocosos que iam
alegrando aquela rotina matinal.
O final da manhã chegou e com ele mais um passeio pelos
arredores. Cerca das onze horas o Capitão Trovão apareceu no
centro da parada equipado para trabalho físico. Isto é com
uniforme de técnica de combate, as mangas do dólman descidas o
quico em vez da boina, o cinturão com cantil, carregadores e
porta- granadas e a G-3 na mão não deixavam margem para dúvidas,
neste final de primeira manhã de regresso do Úcua íamos ter de
dar à perna.
- já estamos f.! lamentou-se o “Francês” ainda a braços com a
ferida na perna provocada pela granada ofensiva.
- Ai julgavas que isto agora ia ser uma balda! Retorqui-lhe eu
preparando as pernas e bebendo uns goles de água directamente da
torneira existente ao lado do refeitório das praças.
O calor aquela hora apertava. A época das chuvas estava no seu
pleno. O Sol tanto estava escondido atrás das nuvens como
aparecia dardejando com os seus raios quentes as partes do corpo
expostas.
Com o cerimonial costumeiro a companhia de instrução formou na
parada. À voz do Capitão Trovão o movimento iniciou-se.
Rapidamente percorremos os cerca de cento e cinquenta metros que
separavam a parada da porta de Armas. Pelo inicio verificamos
logo que era uma marcha. Nos trabalhos de estrada ao sairmos do
CIC formávamos a duas fileiras uma de cada lado da estrada e
começávamos a correr. Nas marchas mantínhamos a formatura a
quatro e desde o inicio o ritmo era muito intenso. Qualquer
tentativa de andar mais devagar era coarctada pelo capitão
Trovão e pelas equipas de instrução que em altos berros mandavam
o pessoal chegar à frente para se não atrasar.
- Cheguem à frente Comandos! Não quebra o ritmo! Ia disparando o
Comandante de Companhia enquanto a coluna se ia desdobrando pelo
asfalto entrando agora no musseque que havia em frente ao
quartel. A velocidade ia aumentando. Cada um de nós sentia todos
os músculos das pernas a serem solicitados. A respiração ia-se
acelerando. O suor corria em grossas gotas ensopando as fardas e
não só. Cada um procurava não descolar do camarada que lhe
seguia à frente. De repente ao meu lado surge uma africana,
aleijada, agarrada a um cajado, com espanto vejo que consegue
movimentar-se tão depressa como eu. Tal facto dá-me forças para
aumentar o ritmo. Mas ela continua ao meu lado. A irritação
cresce dentro de mim. Que se passa que não consigo andar mais
depressa do que uma criatura aleijada. Na altura não me apercebo
da capacidade de sofrimento desta gente, neste gesto vejo a
força que os leva a prosseguir na guerra. Todo o grupo se
apercebe da concorrente que na berma com passadas miudinhas vai
acompanhando a tropa. O Comandante de Grupo também verifica a
situação.
- vamos embora suas “amélias”, nem uma “cocuana” conseguem
ultrapassar. Como querem chegar aos acampamentos e apanharem
turras à mão?! Berrou o nosso alferes, também ele incomodado por
verificar que nossa preparação não tinha ainda atingido grande
nível enquanto a velha ficava para trás. Tínhamos ultrapassado
as ultimas cubatas. Á nossa frente seguia a linha de comboio que
liga Luanda a Malange. O Capitão dirigiu-se para ela como uma
seta. Ultrapassamos uma zona de capim e eis que agora
marchávamos a duas fileiras em cima dos trilhos do caminho de
ferro. A marcha tornou-se descontrolada. O pessoal mais alto
conseguia apoiar os pés nas travessas dos carris mantendo um
ritmo regular. Os “rodas baixas” alternavam os apoios nas
travessas com a brita que as suportava. Era um terrível sobe e
desce que aumentava o esforço de quem por azar ou sorte da
natureza não tinha estrutura para só se apoiar nas travessas.
Pouco a pouco o número dos que não aguentavam o ritmo foi
aumentando, deixando-se ficar para trás.
- je m`en merde mais je ne m` importe pas! Vociferou o Francês
meio a coxear saindo da formatura e deixando-se ficar para trás.
- Ai emerdas-te, emerdas-te ! gritou-lhe o Cerqueira, como se
estivesse no seio da Serra da estrela a apanhar cabritos
fugidios, deitando-lhe a mão à gola do dólman e obrigando-o a
continuar connosco. Juntei-me aos dois e tomei conta da arma do
Francês. Com esta ajuda pareceu recuperar, mas o facto de ainda
ter pontos na perna fazia-o sentir-se diminuído.
- Anda lá que já falta pouco aí à frente é o apeadeiro do
Grafanil! Disse-lhe para o animar. Mas já eu com mais uma arma
às costas me via grego para continuar.
A força acabou por aparecer quando logo adiante viramos à
esquerda e começamos a dirigirmo-nos em direcção ao quartel.
Voltamos a passar no musseque. Não vimos a velha, mas o cheiro a
cozinhado de mandioca lembrou-me que já iam sendo horas da
segunda refeição, alertado ainda pelas mulheres que fora das
cubatas e ladeadas por crianças sujas e pançudas se afadigavam à
volta de fogueiras onde em tachos queimados preparavam o pirão e
o funge que iam comer daí a pouco. Aos poucos começamos a
distinguir ao longe a silhueta dos embondeiros que ladeavam a
parada do CIC e no meio deles a Bandeira Nacional e a insígnia
preta dos Comandos desfraldadas pelo vento que soprava agora com
alguma intensidade.
O céu foi-se tornando escuro, o vento foi levantando poeira e
folhas, do cimo caíram as primeiras gotas de forma espaçada no
principio em diluvio logo a seguir. Para os lados da Cuca o
ribombar do trovão fazia os mais cautelosos correrem a abrigar-se.
A coluna recebeu a chuva como uma benção, as forças voltaram
como o capim que renasce na chana quando a estação seca termina.
O Francês agarrou na arma e ocupou o lugar na formatura. O suor
misturou-se com a água que caía, poupando-nos um banho. As botas
iam mergulhando nas torrentes de chuva que procuravam escoamento.
A porta de armas do CIC já estava à nossa frente e com pouco
esforço o Capitão conseguiu pôr-nos a marchar como se
estivéssemos em parada.
- vamos os Comandos não desistem. Toda a gente com um sorriso
nos lábios e uma determinação no olhar! Em passo cadenciado
percorremos a alameda que unia a porta de armas à parada.
Depois de um frugal almoço o nosso grupo recebeu ordem para na
formatura da duas horas formarmos com uniforme de combate com
bornal, pano de tenda e marmita. Estas indicações logo nos
deixaram interrogações que cada um tentou explicar à sua maneira.
- vamos ter caldeirada! Adiantou o Sá ainda mal refeito de uma
carne guisada com batatas seguida da tradicional papaia de
sobremesa .
- bolas nem me soube o café ! continuou, isto de andar com a
palamenta às costas não é cá para os meus gostos! Lamentou-se
talvez sonhando com um dia na baixa de Luanda ou na praia, uma
esplanada e uma boa petiscada.
- Vamos mas é ter noitada! Entrou o Cerqueira a fazer contas ao
pano de tenda e à marmita.
- Está na hora da formatura e não esperaremos pela demora!
Retorqui eu enquanto ao nossa equipa se começou a deslocar
pausadamente para a parada para a formatura das duas horas. Ao
chegarmos lá verificamos que no arruamento circundante estavam
estacionados três Unimogs prontos a arrancar. No local de
formatura do nosso grupo o soldado Comando Aleluia esperava por
nós fazendo uso de uniforme de combate. Nem precisamos de ouvir
o toque de formatura. Antes mesmo que o clarim ensaiasse as
primeiras notas tínhamos formado e embarcado nas viaturas. Ao
passarmos junto à porta de armas um jeep com o nosso alferes
comandante de grupo e o Sargento monitor juntaram-se à coluna
auto posicionando-se na testa.
A velocidade moderada deixamos o Centro e inflectimos em
direcção à baixa de Luanda, mas em S Paulo viramos para a
estrada que ao longo da costa segue para Norte. Passamos pela
zonas da refinaria e da lixeira, ultrapassamos o quartel de
artilharia existente na zona do Cacuaco e ao chegarmos ao
Quifandongo cortamos à direita por uma picada que levou
directamente à Funda. Á primeira vista a zona ainda parecia mais
inóspita do que havíamos imaginado. Terra de barrocas vermelhas
semeada de embondeiros, e cactos espinhosos. Dispersos, pequenos
muxitos agrupando arvores de pequeno porte unidas por
trepadeiras e algum capim. Nas clareiras, capim semeado de
trilhos de caça e rodados de viaturas. Algumas zonas baixas
revelavam a presença de água das chuvas ou do Panguila que
corria ali ao lado.
As quatro viaturas pararam num largo, recebendo os condutores
ordem para as aparcarem debaixo do arvoredo ali existente,
enquanto que nós desembarcarmos e formarmos.
- estamos na Funda, local excelente para a nossa instrução. Não
vou dizer porquê mas vocês depressa se vão aperceber. Sentenciou
o nosso Alferes Cruz e dando ordem.:
- os nossos instruendos tiram os bornais do cinturão e os panos
de tenda e colocam-nos nas viaturas. Aqui na funda estamos em
zona de combate, por isso não quero ver ninguém ao monte. Quando
estiverem em intervalo de instrução agrupam-se por equipas cada
equipa dentro do seu muxito de forma a que no conjunto façam um
circulo. Dentro de cada equipa quero em permanência um elemento
a fazer segurança para o exterior do circulo. - Vou mandar
destroçar entregam o material aos condutores e cada equipa vai
para o seu muxito e aguardam lá. Dois tiros seguidos formam
imediatamente neste local. Depois do firme sentido direita
volver destroçamos entregamos as peças do equipamentos aos
condutores e afastamo-nos à procura do nosso muxito.
Durante as palavras do alferes Cruz visualizei os locais que me
pareciam mais propícios para que a nossa equipa se instalasse e
tomando a dianteira disse para trás:
- venham que já ali vi um sítio que me parece bom! O Sá e o
Cerqueira seguiram-me sem hesitar enquanto que o Francês
coxeando tentou acompanhá-los.
- Vamos tirar à porra para ver quem fica primeiro de guarda
alvitrei eu, sabendo que essa era a única maneira de ninguém se
sentir prejudicado com o turno que lhe competisse.
- Um, dois três porra ! disse eu ao mesmo tempo que os quatro
levantamos aleatoriamente alguns dedos da mão direita. A
contagem que se seguiu determinou que fosse o Francês a fazer o
primeiro turno.
- Aonde é que me coloco? Perguntou o António nada satisfeito por
ser o primeiro a entrar de guarda.
- Vai ali para o fundo da mata e faz segurança virado para fora.
Podes- te sentar. Deves estar escondido em relação ao lado de lá!
Adiantei fazendo alarde da minha experiência de mato. O Francês
dirigiu-se para o local escolhido preparando-se para um turno de
sentinela. Nós escolhemos cada um local onde nos estendermos, um
sítio onde encostarmos a cabeça e aproveitarmos a
disponibilidade daquela hora para gozarmos uns momentos de
descanso enquanto a equipa de instrução não nos mandasse formar.
- Pum! Pum! Dois tiros de G-3 não permitiram que nos
colocássemos em posição de batermos uma bela sorna, pois soou o
sinal que o Alferes Cruz tinha indicado para formarmos no largo
junto às viaturas.
Em passo de corrida deslocamo-nos para o local combinado e
depois das formalidades iniciais começamos a instrução.
- A primeira equipa inicie o deslocamento por esse trilho que
começa aí ao lado das viaturas! Ordenou o Alferes Cruz depois de
juntamente com o Sargento Vilaça, monitor do grupo, ter passado
revista minuciosa ao grupo que inclui limpeza do armamento e
adaptabilidade do equipamento ao corpo, tendo em vista a sua
funcionalidade e silenciosidade. De seguida foi-nos ordenado que
puséssemos bala na câmara, facto que acontecia pela primeira vez
fora da carreira de tiro.
- Cada instruendo transporta a arma sempre em posição de
paralela ao chão e apontada para o local onde está a olhar!
- A ligação é estabelecida da frente para trás! Cada vez que o
camarada de trás para, o da frente para imediatamente e só
arranca quando o camarada que o segue arrancar! De forma pausada
e prática o alferes Cruz ia nos dando as instruções de como se
deve andar num trilho.
- Quando seguimos um trilho devemos ir sempre com atenção
redobrada não só em relação ao que nos rodeia, observando em
permanência segundo as várias direcções mas também em relação ao
próprio trilho que poderá estar minado ou armadilhado. Assim no
chão pesquisaremos indícios de ter sido mexido ou qualquer
elemento que esteja a mais, arame de tropeçar, lianas, ramos
etc. e também pegadas. Quando tivermos qualquer dúvida paramos e
observamos! Não é assim senhor Sá? Perguntou o alferes Cruz ao
reparar que o Sá ia demasiado entretido em ver a mata que nos
rodeava parecendo alheio aquela “pregação”
- É sim meu alferes!
- Por exemplo agora o trilho quase que desaparece no meio do
capim, não está tão batido por isso é preciso ir com mais
atenção para não o perder! Continuou o Alferes. Se for à noite a
única forma de o seguirmos é indo apalpando o chão com as mãos e
verificarmos onde só há terra ou areia, mas temos tempo de ver
isso!
Assim fomos progredindo por mais uma boa meia hora com a
silhueta flectida até que chegamos a uma clareira que num dos
lados era limitada por umas barrocas que deveriam ter cerca de
trinta metros de altura. Aí o alferes Cruz deu intervalo
mandando as várias equipas do grupo ocuparem posições de
segurança em volta da clareira. Novamente jogamos à porra. O
Francês teve sorte desta vez. O sinal início de instrução
continuou o mesmo, só que desta vez algo ia acontecer que iria
perturbar o normal curso dos acontecimentos. Passado o tempo
normal de intervalo o alferes Cruz disse ao soldado Aleluia:
- Manda formar!
O Aleluia pegou na G-3 olhou em volta e descobriu num ramo de um
embondeiro situado no meio da clareira, um cacho de abelhas.
Calmamente apontou a arma às abelhas e disparou duas vezes.
- Pum. Pum! Ouvimos os tiros e imediatamente corremos para o
lugar de formatura. De início não nos apercebemos do que estava
a acontecer. O alferes Cruz, o sargento Vilaça e o soldado
Aleluia estavam escondidos dentro de pequenas moitas existentes
junto à clareira. Com os dedos tocavam castanholas tentando
afastar as dezenas de abelhas que furiosas investiam sobre tudo
que se mexesse na área. Quando dei conta só tive tempo de gritar:
abelhas! Fujam! correndo para dentro de um pequeno muxito de
onde fiquei a observar as abelhas zunindo à minha volta tentando
atravessar a barreira de folhas sob cuja protecção me acolhera.
Lá fora atarantados os meus colegas hesitavam no que fazer
enquanto eu lhes gritava para se atirarem de cabeça para dentro
do arvoredo mais denso. Um a um todos perceberam e aguardaram o
passar da tempestade não sem que alguns tivessem levado umas
ferroadas. O Francês como não podia deixar de ser foi dos mais
castigados não esquecendo os pontos que tinha na perna. Para
alguns foi necessário acender uma fogueira para com o fumo
conseguir-se tirar as abelhas que se tinham metido no meio da
carapinha. Com esta cena o intervalo prolongou-se por uma boa
meia hora, mas não houve baixas.
A instrução recomeçou com uma prelecção do Alferes Cruz sobre os
perigos que poderemos encontrar no mato e como os devemos
enfrentar nomeadamente as abelhas, as formigas e também as
cobras. Depois montou uma pista de combate com várias máscaras e
abrigos terminando junto as barrocas em dois alvos de tiro de
combate. Inicialmente cada um de nós fez o percurso sem fogo, de
posição em posição até aos alvos. Depois sucessivamente a
situação foi tornando-se mais real até que as últimas passagens
foram feitas com cada instruendo fazendo fogo de cada posição e
durante o percurso, e com a equipa de instrução fazendo fogo por
cima e para os lados de cada instruendo. No ultimo lance antes
dos alvos, antes do assalto lançávamos uma granada ofensiva,
aguardávamos que rebentasse e avançávamos sobre os alvos.
Assim se passou uma boa parte da tarde. Depois iniciamos o
trajecto de regresso até à clareira onde estavam as viaturas, na
forma como tínhamos feito inicialmente. Ao chegarmos ao local,
verificamos que já lá se encontrava um Unimog com capota, com
alguns elementos da Companhia de Serviços que nos vieram trazer
a alimentação e uma ambulância todo terreno com sargento o
enfermeiro, personagem sue generis facilmente identificável pelo
perfil da sua enorme barriga que quando fazia uso de camisola
branca teimosamente teimava em ficar à mostra. Terceira refeição
quente no campo, aí estava a razão de termos trazido as marmitas.
Em fila indiana, depois de nos termos munido das “latas”
recebemos a sopa, a massa com carne, na gíria, “estilhaços com
atacadores de PM”, uma maçã, um quarto de casqueiro e meio copo
de cantil de um líquido fortemente alcoólico, a que o pessoal da
“padaria” chamava vinho. Todos atestamos o cantil com água no
final da distribuição. À medida que recebemos a refeição foi nos
dada ordem para por equipas ocuparmos as zonas onde estivéramos
à chegada e mais uma vez recorremos à porra para ver quem fazia
o primeiro turno de sentinela. Desta vez foi o Cerqueira que
qual exímio equilibrista rumou por dentro da mata naturalmente
escura naquele fim de tarde, com as marmitas da sopa e da massa
numa mão o copo de cantil com vinho na outra a G-3 a tiracolo e
nos bolsos da calças o pão e fruta. Nós os três procuramos
arranjar cada qual o seu tronco para enquanto havia luz do dia
meter pela goela abaixo aquele petisco. Olho à volta descubro um
penedo, inspecciono-o para ver se há formigas ou outros insectos,
não vá ter alguma surpresa desagradável e de relance vejo como e
onde estão o Francês e o Sá. Por um sexto sentido pressinto o
perigo quando vejo o Francês fazer o gesto de se sentar naquilo
que me parece ser um velho tronco de arvore.
- Cuidado António! Grito eu ao pressentir movimentos no tronco.
Não te sentes aí. De um salto chego junto dele enquanto o tronco
começa a mover-se rapidamente. Era uma jibóia que descansava e
que ali poderia apanhar um incauto que se atrevesse a incomodá-la.
Ainda a perseguimos mas acabou por desaparecer dentro de um
buraco que havia mais à frente. O Francês estava branco como a
cal. O Sá também não estava muito bem disposto e eu tive que
lhes explicar que o meu galinheiro nos Dembos era frequentemente
atacado por bichanas daquelas e que nem por isso desgostava da
terra e tomara eu voltar a viver em casa. Vigilantes lá
conseguimos deglutir o jantar, lembrando as considerações que o
Alferes Cruz tecera sobre como lidar com cobras e outros animais
afins. Mas já outro mal nos atacava à medida que a luz natural
se ia extinguindo o famoso mosquito da funda intensificava as
suas investidas. Para além das ferradelas o zumbido ia se
tornando arreliador aumentando a vontade de coçar e bater no
corpo numa tentativa infrutífera de tentar acabar com a peçonha.
Entretanto e como sempre acontece nos trópicos o dia foi-se e a
noite instalou-se. Silenciosamente o soldado Aleluia aproximou-se
da nossa equipa e ciciando indicou-nos que deveríamos formar,
sem barulho, dentro de cinco minutos. Com cautela arrumamos as “latas”
que previamente tentamos limpar com areia do chão e
silenciosamente deslocamo-nos até ao local de formatura, não sem
que antes chamássemos o Cerqueira para que se juntasse a nós. A
formatura foi feita com vozes baixas e começou-se a instrução
por uma breve explicação sobre o passo fantasma e as formas e
cuidados a ter nos deslocamentos nocturnos por trilhos. Logo de
seguida iniciamos o deslocamento em fila indiana, pelo trilho
que já tínhamos percorrido durante a tarde até que mais à frente
iniciamos um trilho novo e aí o percurso passou a ser feito de
forma individual. De cinco em cinco minutos um instruendo
iniciava o percurso. A nossa equipa foi a primeira a entrar no
trilho e eu dentro da equipa avancei em primeiro lugar. O
percurso de inicio era fácil com a claridade existente conseguia-se
verificar por onde seguia o trilho mas à medida que o mesmo se
internava dentro da mata tive que começar a gatinhar para com
uma das mãos apalpar o terreno e “ver” se continuava a seguir o
trilho. Na outra segurava a G-3 e uma haste fina de capim
quebrada a meio tentado adivinhar a possível localização de
arames de tropeçar. Mas apesar dos cuidados não evitei um que
estava dissimulado num buraco no meio do trilho e que estava
coberto por ramos e folhas. O estrondo enorme de uma granada de
mão encheu aquele princípio de noite. O clarão perto de mim e o
cheiro de explosivo assim como o barulho abanaram-me um bocado,
mas de imediato reagi continuando a progressão não ligando aos
berros que ia ouvindo ali ao lado e que entendi ser do Aleluia
que de forma alarmante ia gritando:
- Ai a minha perna! Ai a minha perna! No início do trilho ouvi o
Alferes Cruz berrar: depressa ambulância e enfermeiro para aqui!
Depois o roncar de um Unimog até ao local do inicio do trilho e
já entrapado e cheio de mercúrio cromo o Aleluia foi levado,
fora das vistas dos instruendos que aguardavam a vez de iniciar
o percurso.
- Este já esta! Disse o sargento enfermeiro, fazendo crer que um
instruendo estaria gravemente ferido, enquanto se afastava com a
ambulância com a sirene a troar o tiro- rori . Dentro do grupo
de instruendos a apreensão aumentou e só no final da instrução o
vimos com um ar descansado e zombeteiro nos apercebemos da
encenação que nos tinham pregado.
Entretanto fui continuando a progressão. Quanto mais tempo
parava para em completo silêncio procurar esclarecer o trilho,
mais o celebre mosquito comando me atacava. De onde a onde a voz
do alferes Cruz ou do sargento Vilaça davam conta da sua
presença. Nos intervalos, ruídos mais ou menos estranhos de
animais bravios que não estavam habituados a serem incomodados.
Por mais três vezes o som arrasador das granadas de mão a
rebentar ecoou na floresta, de todas as vezes um clarão se
ergueu no ar como se uma pequena bomba atómica se tratasse. O
eco repercutia-se pelos vales anexos e a bicharada em redor
fugia espavorida alguns bem perto de mim. Às vezes juntamente
com o rebentamento, dois a três tiros do que me parecia ser
pistola-metralhadora. Até que finalmente cheguei a um espaço
aberto onde o trilho terminava. Surpresa das surpresas o local
dava por trás do sitio onde estavam aparcadas as viaturas. Com
as voltas que o trilho deu e com os incidentes que se foram
sucedendo nem me apercebi que estava a voltar ao princípio. Eram
cerca das duas da manhã quando chegamos ao Centro. No corpo as
marcas daquele tarde noite passada na Funda, mordidelas de
mosquito e abelhas, terra, pó e negro do fumo dos rebentamentos,
alguns arranhões à mistura. Nada que um bom banho de água fria
não viesse apagar. Na caserna tive notícia das preocupações de
todo o grupo julgando que eu tinha sido atingido pela primeira
armadilha que explodira e em que o alferes Cruz e o sargento
enfermeiro fizeram uma encenação tão bem concebida. Uma boa
gargalhada rematou o final daquele dia. Alguns de nós já
roncávamos a bom roncar quando dos altifalantes os acordes do
“Donne moi ma Chance” encheram a noite ainda me recordo que a
terceira guerra mundial tinha começado e que hordas de
terroristas tinham invadido o norte de Angola.... ainda consegui
raciocinar a quem no dia seguinte ia tentar convencer a desligar
aqueles malfadados altifalantes.
Os dias foram passando de forma sempre preenchida, à bandeira
seguia-se a GE, depois a técnica de combate ao fim da manhã, ou
marcha forçada ou trabalho de estrada. Para acalmar tínhamos o
tiro de combate na carreira de tiro da PSP na Samba que dava
direito a um passeio de Unimog através de toda a baixa de Luanda
o que nos permitia molhar a vista nos decotes e mini saias que
as acaloradas luandenses vestiam. À tarde depois do almoço
quando O Capitão Trovão estava mal disposto normalmente depois
de uma chispalhada acontecia termos de dar uma ou duas voltas à
parada em passo de corrida com a arma em auto arma. O calor, a
refeição pesada tornavam um suplício este pequeno passeio. Ao
fim do dia era a GAM que quando a agua que guarnecia os charcos
ao lado do campo de futebol, não se evaporara servia de piscina
onde como cavalos marinhos rodopiávamos vezes sem fim. Antes de
chegarmos à caserna passávamos nos balneários gerais onde
vestidos tomávamos banho e lavava-mos a farda. À noite éramos
acordados em voz baixa ou à granada e com marcha ou corrida
completávamos mais um dia de extenuante sacrifico. Mas aconteceu
que ao princípio de tarde de uma Quarta-feira, na formatura o
Capitão em vez de mandar seguir aos seus destinos gritou:
- Atenção instruendos da Companhia de Instrução, hoje é Sábado,
amanhã é Domingo. Os instruendos que quiserem sair devem formar
na parada dentro de meia hora com uniforme nº2, trazendo as
respectivas dispensas preenchidas!
Quando a companhia destroçou um imenso clamor ecoou e velozmente
toda gente desapareceu no interior das casernas. Onze dias
tinham passado desde o desembarque no porto de Luanda. Todos
estávamos extenuados por tudo aquilo que tínhamos passado, mas
depois do banho, de vestirmos a farda nº 2, de embarcarmos nos
Unimogs e Berliets postos à nossa disposição para nos
transportarem para a Mutamba, foi como que um bálsamo tivesse
passado por nós fazendo com que progressivamente as mazelas e
dores se apagassem.
Durante o trajecto fui arquitectando o plano de acção para
passar aquelas curtas horas. Primeiro iria procurar refúgio onde
dormir e não via melhor local do a casa do tio Diamantino,
situada no início das Ingombotas mesmo à beira da Mutamba. O tio
Diamantino tinha uma escola de condução numa grande moradia, com
quartos sempre vagos onde antes da guerra os meus pais quando
tinham de vir a Luanda normalmente se instalavam. Seria um
prazer voltar a vê-los depois de tantos anos. Teria de pensar
como me subtrairia ao jantar para poder acompanhar o pessoal da
minha equipa a quem já me tinham nomeado cicerone.
Há hora de saída quatro instruendos apanharam um Unimog posto á
disposição e aterraram no centro de Luanda com ar espantado de
quem não imagina haver uma cidade cheia de movimento e vida do
lado de fora da vedação do CIC… ''
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