TESTEMUNHOS
E CONTRIBUTOS
38ª Companhia de Comandos — "Os Leopardos"
A SEDE
A sede ou melhor a preparação
dos Comandos contra este terrível flagelo era parte importante
da preparação de um Comando. Assim o reflectia a própria
estrutura do Curso que se iniciava com a chamada “Prova da Sede”
normalmente conduzida num local mítico de Angola perto da
povoação do Ùcua, celebre pelos acontecimentos produzidos em
1961 aquando da sua reconquista às forças da UPA. Durante todo o
curso o instruendo era treinado a poupar a água que trazia
consigo e a descobrir formas de a obter nas diversas regiões por
onde passava. No texto seguinte de forma ficcionada pretende-se
dar um “ar” do que se passava na prova da sede em que por norma
cada um tinha que se aguentar com um cantil de água e uma ração
de combate/dia para uma actividade física bastante superior ao
aceitável em operações. Santos e Castro nas suas palestras sobre
o Curso chamava a atenção de que esta fase tinha como objectivo
fundamental levar o Instruendo a um ponto físico e psicológico
mais baixo possível para pudesse conhecer os seus limites e os
instrutores obtivessem uma primeira avaliação do grupo que
tinham em mãos.
No dia de chegada ao Centro de Instrução de Comandos depois de
determinados procedimentos logísticos a instalação sonora
berrara…
- Atenção Companhia de Instrução, avisam-se todos os instruendos
que, a partir deste momento, estão de alerta de três horas! Este
alerta implica que, dentro de três horas, deverão estar pontos a
formar em qualquer altura. Devem preparar-se para uma “saída,”
algures para a Região Norte de Angola. Recomenda-se que na
bagagem pessoal devem levar : uma muda de roupa, artigos de
higiene pessoal, graxa e escova de calçado, a boina e uma ração
de combate.
- Eu não lhes disse que as latinhas já tinham destino! ironizou
o António, todo impante por julgar saber o que nos reservava o
Programa Horário dos próximos dias. À nossa custa,
apreenderíamos que “o nunca se sabe” era uma constante do Curso.
Arrumados os sacos de bagagem militares com os nossos pertences,
lá fomos jantar e, após este, todos sem excepção nos apressamos
em dormir, para aproveitar bem o tempo que nos deixavam usufruir
a nosso belo prazer.
Com tantos acontecimentos nem cuidamos de ler a Ordem de Serviço
do CIC, que nesse dia assim rezava:
Quartel em Belo Horizonte, ....,...........,............
Determino e mando publicar:
- Aumentos
Que sejam aumentados, aos efectivos deste Centro de Instrução de
Comandos e à Companhia de Instrução, os seguintes militares:
- Oficiais,........
- Sargentos,..........
- Praças,.................
Destinam-se a frequentar o 33º Curso de Comandos com vista à 54ª
Companhia de Comandos.
O Comandante
Tenente Coronel de Infantaria “Comando”
Depois de assinada, pelo Comandante - o Primeiro Sargento
Esteves, amanuense da Secretaria Geral, mandou entregar o
documento pelas várias dependências do quartel, arrumou a
secretária e fechou a porta da secretaria, e apressou-se a fazer
o trajecto até casa.
Apesar dos inúmeros acontecimentos do dia, o cansaço não me
deixou demorar muito tempo a adormecer. Na caserna, pelas vinte
e três horas, o coro de assobios e roncos era uma constante,
conforme constatou o soldado Aleluia. Incumbido pelo Comandante
da Companhia de Instrução, juntamente com os restantes
auxiliares dos Grupos de instrução de verificar se todos os
Instruendos se encontravam dentro das casernas.
Depois dessa revista, o Comandante de Companhia deu luz verde,
para que os procedimentos para mandar formar a Companhia fossem
desencadeados.
A essa ordem, os Oficiais instrutores e alguns Sargentos
monitores distribuíram-se ao longo das casernas, tomando posição
junto das mesmas. À hora previamente determinada, foram
accionadas várias granadas de mão ofensivas, lançadas para a
frente de cada caserna, ao mesmo tempo que armas automáticas de
vários tipos eram disparadas, em rajada.
O barulho das explosões e o estremecer de toda a estrutura da
caserna, fez-me dar um salto na caserna. Nas janelas um ou outro
vidro mal seguro caiu, partindo-se com o ruído que lhe é
característico.
- Atenção, Companhia de Instrução, tem três minutos para formar
na parada, três minutos!
- Atenção Companhia de Instrução,....
De onde a onde, mais uma rajada e ainda uma granada. E outra
vez:
- Atenção, Companhia de instrução,.....
As luzes permaneciam apagadas pois, com a confusão generalizada
que se seguiu, ninguém atinava com elas . Por fim, o Francês
mais desenrascado e por dormir junto à porta, carregou no
interruptor e a luz acendeu-se; dando para ver que o Cerqueira
se tinha imobilizado, debaixo da cama com a almofada em cima da
cabeça.
- Oh pá, sai daí que já acabou o ataque! disse-lhe eu.
- Porra, não que eu senti os estilhaços a passar aqui à volta da
cabeça, e as balas a zunir!
- Tu estás mas é maluco! respondi-lhe eu, apesar de saber que
ele dormia no beliche, por cima do meu.
- E vê se te despachas, se não queres passar o resto da noite a
pagar umas completas na parada! Concluí.
Depois daquele “atascanso” inicial, lográmos fardar-nos e
equiparmo-nos rapidamente e, em passo de corrida, dirigirmo-nos
para a parada, onde no local da formatura de cada grupo se
encontrava a respectiva equipa de instrução, armada e equipada
em uniforme de técnica de combate: Oficial Instrutor, Sargento
Monitor e Soldado Auxiliar. No centro da parada encontrava-se o
Comandante de Companhia que, de tempos a tempos, anunciava:
- A partir deste momento os instruendos atrasados passam a pagar
dez de braços! A seguir foram quinze, depois vinte e assim foi
aumentando o número de repetições até que todos os instruendos
chegaram à formatura.
Finalmente, todos os instruendos se reuniram nos respectivos
Grupos de instrução. De forma regulamentar cada Comandante de
grupo deu as ordens para preparar a apresentação do Grupo. O
Sargento monitor e o soldado auxiliar verificaram, e corrigiram,
os alinhamentos. Mal o grupo ficou pronto, o nosso Alferes
apresentou-o ao Comandante da Companhia. Depois tomámos a
posição de descansar e aguardamos.
A luz da parada era diminuta, o silêncio era apenas entrecortado
pelas vozes de comando. Um a um, todos os grupos foram
apresentados ao Comandante de companhia. Mantinhamo-nos firmes,
porque sabíamos que apesar da posição ser de descansar “à
vontade,” o que numa unidade normal equivale a dizer que se pode
estar numa certa descontracção, aqui a posição era rígida e mais
tarde nos iria ser explicado porquê. A demora nesta posição é
incómoda, principalmente para quem não está habituado. Mal
acabaram os movimentos de ordem unida, apercebi-me que além da
música que ouvia ao longe e ecoava na noite, detectara um zunido
irritante e mais irritante se tornou quando, uma e outra vez,
fui sofrendo as arremetidas de dois ou mais mosquitos, quais
“Stukas “ em voo picado mergulhando em direcção à minha cara e,
caso espantoso, também através do camuflado principalmente nas
pernas iam exercendo uma série de “sevicias” que punham à prova
o meu estoicismo. Vontade não me faltava de mandar uns valentes
safanões e destruir aqueles bastardos que sem cerimónia e em
autêntico regabofe se banqueteavam, com carne, ou melhor, sangue
fresco acabadinho de chegar do “Puto”. Para distrair-me ia
concentrando-me na música que continuava a ecoar, e nessa altura
é que reparei que era Sábado à noite. A chegada e tudo resto
tinham alterado as minhas referências de calendário, mas ali
estava o som da noite africana para mo recordar. Um movimento,
parada a dentro, fez desviar a minha divagação. Os oficiais e os
sargentos que não faziam parte da equipa de instrução entravam
na parada, em passo de corrida, indo tomar posição de frente
para formatura, e de cada um dos lados do mastro da Bandeira,
eram as “montras”.
- Atenção Companhia de Instrução! Firme, Sentido - berrou o
Comandante de Companhia de instrução, um gigante de mais de
metro e noventa, que nos iria dar boas sovas em termos de
preparação física. As “montras” tomaram a mesma posição. O
silêncio voltou a imperar, e a música dos arredores a arfar.
Nisto, da escuridão aparece uma personagem que pela estatura
baixa e fraca envergadura, deduzi ser o Comandante do Centro que
nos recebera da parte de manha e imediatamente nos mandou para a
instrução. O Comandante de Companhia apresentou a Companhia e
cada “montra” foi apresentada pelo elemento mais graduado. As
forças tomaram a posição de descansar.
- Atenção instruendos do XXXº Curso de Comandos, a Companhia de
Instrução vai deslocar-se para um ponto da Zona de Intervenção
Norte onde vai ser submetida a um período de instrução. Durante
parte do deslocamento vai ser escoltada por uma Companhia de
Comandos. Em caso de contacto com o Inimigo os instruendos devem
seguir atentamente todas indicações das respectivas equipas de
instrução, abstendo-se em qualquer circunstância de utilizar o
armamento que têm distribuído. A segurança será sempre garantida
pela escolta. Boa sorte!
- Comandante de companhia pode mandar embarcar! Depois destas
palavras o Comandante do CIC recebeu a continência da Companhia
e das “montras” e, em passo de corrida, desapareceu na penumbra
que envolvia parada.
Instrutores à frente! Gritou o gigante Comandante de Companhia.
A correr cada subalterno dirigiu-se ao centro da parada. Após
breves frases trocadas com o comandante, regressaram outra vez a
correr e, junto dos grupos, deram ordens que nos iriam levar
debaixo de marcha até junto das viaturas. Estas, encontravam-se
aparcadas ao lado da parada e junto do campo de futebol. Quando
a indicação dada na parada para embarcarmos foi transmitida, o
silêncio até então reinante foi quebrado pelo barulho de motores
a entrarem em funcionamento. Os faróis acenderam-se e deixaram
ver uma poeira avermelhada que se levantava do chão, à medida
que cada grupo de instruendos se deslocava. O ronronar dos
motores era interrompido por uns roncos mais fortes provenientes
de uma ou outra viatura com complicações de mecânica fazendo
esquecer a música. Por equipas fomos tomando lugar nas viaturas,
maioritariamente Unimogs e algumas Berliets. Como era uso em
todo o teatro de operações, estas estavam sem taipais nem
pára-brisas e na caixas os bancos de madeira colocados ao meio
voltados para o exterior.
Agora toda a gente estava embarcada.
À frente da primeira fila de viaturas distinguia-se o vulto do
comandante de companhia. De repente um jeep aproximou-se. Acabou
também por embarcar. Por momentos imaginámos que o deslocamento
iria começar, mas o Comandante desceu do Jeep. Novamente de pé,
e à frente das primeiras viaturas, gritou:
- Desligar motores! A esta ordem as viaturas emudeceram-se e os
faróis apagaram-se. Momentaneamente voltei a ouvir a música no
muceque e pensei – que se passa?
- Equipas de instrução mandam desembarcar o pessoal! A esta
ordem o nosso Alferes ordenou que abandonássemos a nossa viatura
e que formássemos junto à mesma. O mesmo aconteceu com o
restante pessoal. Fomos então conduzidos para a parada, para o
sítio habitual de formatura onde, rapidamente, destroçamos com a
indicação de velozmente irmos para as casernas.
Afinal, parecia que tudo não tinha passado de acção psicológica.
Com a pressa de quem quer voltar para a cama, num salto
estávamos na caserna e com as duas botas de fora, na cama. Ainda
ouvi o Cerqueira grunhir qualquer coisa, que em Lamego depois
duma falsa partida havia sempre um café quente. Já não ouvi o
resto pois já dormia a sono solto, quando os altifalantes
berraram novamente:
- Atenção Companhia de Instrução, tem três minutos para formar
na parada.
- Atenção Companhia de Instrução...
De forma idêntica como anteriormente, processaram-se os
cerimoniais que nos levaram a embarcar nas viaturas. No entanto
distingui, duas diferenças: a música da rebita tinha
desaparecido e os mosquitos eram menos violentos.
A coluna arrancou lentamente ...
Era com esse espirito que agora nesta coluna num sábado, quase
Domingo, deixando Luanda para trás a caminho do Ucua, para a
prova da sede, se iniciava mais um Curso de Comandos, o XXX.
As viaturas seguiam umas atrás das outras, tentando os
condutores manter as ligações da frente para trás, não deixando
que a coluna se partisse. Nos bancos de madeira, instrutores e
instruendos aconchegavam-se de modo a estarem seguros e não
caírem dos lugares que ocupavam e procurando um mínimo de
conforto que lhes permitisse algum descanso. Eu, da mesma forma,
deixava-me embalar, recordando com saudade as idas de eléctrico,
no verão, ao Bom Jesus, em Braga que para mim foram um espanto,
após a chegada de forma algo apressada logo a seguir aos
acontecimentos de 61. O deixar vaguear os pensamentos, por tão
longínquas paragens, era uma forma de ir mantendo uma certa
vigília e não cair na tentação de uma soneca.
Largamos a costa descemos ao Cacuaco, passámos a ponte do
Panguila em Quifandongo, depois Porto Quipiri, Fazenda Tentativa
com os seus palmares, Caxito e Sassa - as portas da guerra.
Assim chamada porque na altura, de Luanda até este local, se
andava sem escolta militar. Ao chegarmos ao Sassa parámos, para
integração da escolta da companhia de comandos.
- Eh malta, daqui para a frente temos de estar atentos!
Descarregou o Cerqueira que até aí tinha vindo numa sornice, que
lhe não era muito habitual.
- Vê lá se calas, que não estou para fazer ginástica extra por
tua causa! Ripostei entre dentes.
- Lá que agora vai fiar fino, vai! Atirou o “Francês” que,
apesar do seu ar desenrascado, nunca tinha estado em zona de
acção e ainda por cima, de noite.
- Tenham calma que ali a companhia de comandos da escolta, está
pronta para o que der e vier! Comentou o Sá e continuando: e que
andem depressa que estou com uma vontade de dormir que mal pare
durmo em qualquer lado!
- Dormes, dormes , isso gostava eu que assim fosse! Admiti eu,
numa falsa esperança que aquele dia, que já ia tão longo,
tivesse finalmente um fim.
Com a conversa nem vimos que, tão depressa como tínhamos parado
e após uma breve sucessão de ordens, a coluna retomou o
movimento, agora mais cauteloso, e mais à frente passáramos o
desvio para o aquartelamento da Mussenga. O movimento continuou
em cima da tira de asfalto que se dirigia para a povoação do
Úcua e além. Somos então avisados da entrada numa picada de
terra batida, pela poeira que imediatamente se começou a formar
em redor e por cima das viaturas da coluna. Rolos e rolos de pó,
como se fosse fumo, foram-nos envolvendo quasi impossibilitando
a respiração e que iluminado pelos faróis tecia imagens
fantasmagóricas ao longo da picada. De cada lado, podíamos
distinguir a orla da mata através do recorte da copa do arvoredo
contra o céu escuro. Mais perto, o capim seco e raro que
crescera, certamente no local onde fora necessário proceder à
desmatação, para abrir a picada. A coluna rodava agora mais
devagar, com as viaturas mais próximas umas das outras apesar do
desconforto que o pó nos produzia. Mas, era necessário manter a
ligação e os procedimentos operacionais não eram esquecidos.
Sentia-se uma maior tensão no ar. Cada um de nós procurava ver
através do capim e da zona do arvoredo, imaginando se o inimigo
estaria naquele local à nossa espera. Aos poucos, os lábios
começaram a transmitir aquela sensação de secura que tantas
vezes nos iria acompanhar, fruto da junção do pó com a
ansiedade, perante o desconhecido que aquela situação sempre
representava. Rolamos um bom bocado desde que abandonáramos o
asfalto. Subimos e descemos pequenas colinas, atravessamos
linhas de água quasi secas e chegamos a uma área que se
espraiava para cada lado da picada com algum capim mas sem mata.
A coluna parou. Vislumbrei a figura do comandante de companhia
dando ordem aos condutores para aparcarem as viaturas.
Lentamente, aquele cordão motorizado foi saindo da picada e
foram estacionando num local próximo da entrada, ficando o
parque alinhado e ordenado por grupos.
Quando tal sucedeu ouviu-se a ordem de desligar motores. À
medida que foi cumprida, os faróis foram-se apagando até todo o
conjunto ficar na escuridão e silencioso.
- Comandantes de grupo à frente! Gritou o Capitão Trovão.
Silenciosa e rapidamente, os instrutores comandantes de grupo de
instrução aproximaram-se do comandante de companhia, fazendo a
saudação militar e tomando uma posição firme e correcta.
Aproveitei para tentar ver as horas. Pareceu-me que já passavam
das três e meia. Em breve, o sol nasceria e pouco tempo teríamos
para dormir. Os comandantes de grupo terminaram a reunião com o
capitão e voltaram, em passo de corrida, para junto do
respectivo grupo. Deram ordem para abandonarmos as viaturas e
segui-los. Cada grupo foi encaminhado para uma determinada área,
de modo a que, no conjunto, se formasse um extenso círculo. E,
finalmente, a ordem para dormir chegou. Mas, dentro de cada
equipa, um elemento rotativamente manteve-se acordado e alerta.
Pelas sete horas, já o sol ia alto, o soldado Aleluia abeirou-se
do nosso grupo e disse ao Cerqueira que tínhamos de nos pôr a
pé, e preparar-nos para a formatura da bandeira que seria às
oito horas. De caminho, passaria novamente pelo local para que
fossemos receber água e pão.
- Vá pessoal, toca a pôr a pé! Rouquejou o Cerqueira, mostrando
no rosto e na voz os efeitos dessa noite mal dormida.
Aos poucos, cada um de nós foi-se espreguiçando, num ritual em
que cada um pedia forças para iniciar um novo dia. Do anterior
íamos ter muitas saudades, pois andar de Unimog ou Berliet não é
o mesmo que andar, ou correr, com uniforme de combate. Ao nosso
lado, nos grupos de praças e no de oficiais, o mesmo cenário se
desenrolava, militares de pé ou de joelhos levantavam-se
estremunhados, para um dia de trabalho que se adivinhava
bastante calorento. Mais abaixo, junto à mata, algum nevoeiro
pressupunha existência de água no local. Às sete e trinta, o
soldado Aleluia apareceu novamente junto ao grupo de sargentos e
mandou formar. Nessa altura todos, menos o “Francês,” tinham
feito a barba com água que restava no cantil e limpo as botas.
Optimistas, estávamos uniformizados com o uniforme de bandeira.
Em coluna por um, vulgo fila indiana, dirigimo-nos para um
atrelado tanque de água estacionado junto á Berliet das rações
e, cada um de nós, atestou o cantil e recebeu duas carcaças, que
um “básico “ da CCS( Companhia de Serviços) distribuía. O
“Francês” aproveitou para beber a água que tinha no cantil,
antes de receber a nova ração. Voltámos para o lugar de
estacionamento do nosso grupo e aproveitamos para tomar o
pequeno almoço: a dolca (lata de leite com chocolate), compota e
o pão que acabáramos de receber. Entretanto, o “Francês” fazia a
barba e comia.
Às oito horas os altifalantes anunciaram:
- Atenção companhia de instrução! Forma imediatamente na parada!
Num ápice, os cerca de trezentos instruendos correram em
direcção a um espaço vago que rodeava o mastro da bandeira e,
onde o capim estava mais tombado. Nos locais de formatura de
cada grupo já se encontravam as equipes de instrução, todos de
tshirt branca e impecavelmente fardados. Aqui e ali, ao lado ou
atrás dos grupos, já havia instruendos a ”pagar” umas de braços,
certamente por terem sido pouco lestos no deslocamento para o
local da formatura. Todos os grupos alinharam as filas e
colunas, formando um imenso U, com a abertura voltada para o
local onde estava o mastro da bandeira. Nalguns locais o capim
ainda estava de pé, dificultando a visão entre todos os grupos.
E assim, começou o cerimonial da bandeira, com que iniciaríamos
quasi todos os dias de instrução. Primeiro a revista do
comandante de companhia aos instrutores, depois destes ao
elementos da respectiva equipa de instrução e, por fim, dos
instruendos. Nesta fase, o sargento monitor levava o seu
caderninho de notas onde apontava as faltas ou méritos que cada
um exibia: barba mal feita, cabelo grande, botas mal engraxadas,
arma mal limpa, farda em más condições, eram os factos mais
notados. Para tudo havia local apropriado para assinalar na
folha de controlo. Depois, o içar da Bandeira Nacional, que com
todas as formalidades cerimoniais era transportada até junto do
mastro e presa à adriça; ao toque subia, com as honras prestadas
por todos nós. Por fim, a leitura do Código do Comando. Todos os
dias um instruendo era nomeado para fazer a leitura. Em voz
alta, sem enganos e numa posição marcial, tinha que se fazer
ouvir até aos lugares mais afastados da formatura. Como me
parecia estranho que estes acontecimentos estivessem a ocorrer
ali, no meio do mato, não muito longe de locais onde no início
da guerra e, mais tarde, se passaram cenas de violência e de
morte que eu ainda não tinha esquecido. A localidade onde tinha
crescido estava a pouco mais de cem quilómetros, e os
acontecimentos que guardo na memória não se coadunavam com o ar
de acampamento ordenado que estávamos a viver e que só o facto
de termos connosco armas e munições, lhe retirava a normalidade
de um campo de férias ditas radicais.
Acabada a cerimónia, o Capitão Trovão saltou para cima de um
unimog a que tinham retirado os bancos e, de cima dessa
plataforma, iniciou os procedimentos da ginástica educativa que
todos iríamos conhecer por GE. Usualmente, surgia no horário
depois da cerimónia da bandeira. A lição iniciava-se por uma
série de exercícios de aquecimento que, rapidamente, iríamos
memorizar e encadear, seguida de uns bons dez a quinze minutos
de corrida, para continuar com exercícios força. Terminava com
exercícios de retorno à calma.
Depois de mandar firme e sentido, formámos um imenso xadrez que
nos estendeu por todo o espaço livre transformado em parada,
acabando por alisar os tufos de capim que, teimosamente, ainda
se mantinham de pé. Fomos despindo as peças de uniforme à voz,
até ficarmos em tronco nu. A roupa, arma e cinturão foram
colocados junto do pé direito.
- Vamos embora Comandos! Exercício de saltitar! Um! Dois ! Três
e Quatro! De forma pouco expedita tentávamos acertar com os
movimentos e com o ritmo. Depois de concluído o aquecimento o
capitão Trovão desceu do Unimog e começando no grupo de oficiais
mandou formar a duas fileiras, seguindo-se o nosso e depois os
grupos de praças. À frente do capitão seguia um unimog com uma
equipa de comandos, armada e equipada, na cauda da coluna
idêntico dispositivo de segurança. Enfiámos, em passo de corrida
por uma picada que se dirigia para norte e que, a cerca de
trezentos metros da parada, entrava dentro do arvoredo. Tal veio
trazer-nos uma sensação de frescura que nem o pó levantado pelo
unimog, que ia à nossa frente, conseguiu esconder.
- Comandos, .... vamos em frente ! gritava o capitão Trovão
sincopadamente, enquanto nós respondíamos em coro.
- Força Comandos! Queremos ser Comandos! Comandos! A acção
psicológica estava sempre presente. Respondíamos à vez, como se
chamássemos todas as forças para lutar contra o calor a humidade
o pó e o cansaço, de uma noite não dormida.
- Só mais esta subidinha! Tornava o capitão. Não custa nada!
Queríamos acreditar, mas já saíramos da mata e à nossa frente
alongava-se um extensa subida que cortava a meio um monte careca,
de capim ralo, e que o sol iluminava completamente. Não custa
nada uma ova, pensei eu com os meus botões. Mas o ouvir mais uma
vez, força Comandos, deu-me ânimo e energia para atacar tão
íngreme subida. O suor escorria-me pelo rosto, passava pelo
peito e barriga, descendo para as cuecas, produzindo uma
sensação de frescura nas partes ditas baixas, que contrastava
com o barro vermelho que a junção do pó e suor faziam na cabeça
e no tronco. A custo lá atingimos o cume da subida, fizemos meia
volta e começámos a progredir no sentido do acampamento. Todos
imaginámos como se devem sentir os animais de sela quando se
movimentam em direcção à cavalariça. Uma estranha força nos
envolveu, fazendo com que esquecêssemos a sede, o suor, o pó e o
cansaço. Voltámos a entrar na mata, aproximamo-nos da parada
rodeámo-la mas, com grande pena nossa, continuamos a corrida
para o lado da picada para depois de uma pequena volta virmos
ocupar os nossos locais do xadrez inicial. Depois de uns breves
momentos, de retorno à calma e de descontracção, voltámos à
rigidez da posição de sentido e, por um salto, ficamos em
posição deitado facial. Aí começámos a contar extensões de
braços à medida que executávamos.
- Para cima, gritam Comandos! para baixo, contam! Gritou,
novamente o capitão Trovão.
Em coro, todos nós gritámos: Comandos - um, Comados - dois,
Comandos ...... trinta!
- Descansar ! veio a voz do alto do Unimog. E continuou: olha
que maravilha está tudo na praia a apanhar sol! Há aí gente
muito branquinha que precisa de se torrar, para melhor se
camuflar! Apesar do descanso, eu interrogava-me sobre o que se
estaria a passar debaixo das minhas costas, e no meio do capim
enrodilhado que me estava a fazer de cama, pois um certo rabiar
fazia-me imaginar coisas, que nem os meus anos de Angola no
interior quereriam que fossem verdade. No mínimo, eram formigas.
Só esperava que não fosse a quissonde, sempre pronta a tudo
devorar e ferrar, não se importando em que desgraçado cristão o
estaria a fazer. De paralelo, só viria a conhecer o mosquito
comando da Funda, com a sua tromba sugadora capaz de atravessar
a lona das botas tropicais. Verdadeiro prodígio, digno de
figurar nos rankings da especialidade. Mas isso são estórias de
mais adiante. A formiguita que me acossava agora, não tinha a
capacidade anti - calça ou anti - bota tão desenvolvida. Mas, à
semelhança do efeito das cargas anti – blindagem, conseguia
facilmente ultrapassar o tecido ou lona exterior, e anichar-se
nos locais mais recônditos do corpo. De lá só saía com recursos
expeditos, que terminavam sempre por ter que se retirar cada
animal primeiro o corpo, e a seguir a cabeça, e respectivas
tenazes que a ladeavam. Ainda não tinha terminado estas
divagações, e já o capitão Trovão determinava :
- Posição facial, Comando, para cima, quero ser , para baixo.
Para cima! Em uníssimo gritámos Comando quero ser! Comando q....
- Alto, descansem! Tornou o capitão.
Seguiu-se uma série de abdominais, com o mesmo ritmo e a mesma
música, para se acabar a sessão com uma série de cangurus.
Depois, ordem unida de volta à calma. Terminámos, vestindo-nos e
equipando-nos à ordem, movimento a movimento, e na sequência
inversa da que nos tinha posto em tronco nu.
- Rapidamente, vão dar um salto vertical, mãos e a arma acima da
cabeça, e vão gritar bem alto: comandos! E correm para os vossos
estacionamentos. Já! Gritou o capitão. Imediatamente, trezentas
vozes ecoaram no alto daquela colina, e destravadamente correram
nas mais dispares direcções, procurando chegar o mais
rapidamente possível ao local onde cada um tinha passado a
última madrugada.
Corri, com as forças que ainda tinha. Mal cheguei ao local de
estacionamento do nosso grupo, bebi uma boa golada do cantil. A
água parecia sopa, estava morna, e os desinfectantes davam-lhe o
sabor característico do “halazone”. Aos poucos, fomo-nos
juntando debaixo de uma pequena árvore que crescia ali, isolada
no meio do capinzal. As magras folhas pouca sombra davam, mas no
espaço de descanso que nos estava destinado, não havia melhor.
- Porra, que esta da ginástica sueca, sem banho no fim, não é
nada agradável! Sentenciou o “Francês” , manifestando os seus
hábitos higiénicos recolhidos em terras gaulesas;
- Contenta-te com a água que tens no cantil, que já não é mau!
Ripostou o Cerqueira. Lá para os meus lados, a gente sua mas há
sempre uma poça de água para lavar o toutiço e para dessedentar
os lábios! Continuou, imaginando-se no alto da serra, em dia de
calor, mas com os regatos gelados, próximos e disponíveis.
- Ali em baixo, no caminho que fizemos na corrida, deve haver
água! Disse eu, demonstrando conhecimentos da zona que, na
realidade, não tinha.
- Logo hoje, que faço anos, é que havia de estar aqui !Lembrou o
Sá.
- Não tenhas problemas que, logo à tarde, fazemos-te uma festa,
com prendas e tudo! Dissemos-lhe os três, em coro.
- Nossos instruendos devem formar, imediatamente, no local de
formatura da parada, com uniforme de combate! Avisou o soldado
Aleluia que, sorrateiramente se tinha aproximado do nosso grupo
e aproveitado para ver o que se passava connosco.
De imediato, fizemos as mudanças de equipamento e uniforme e
correndo para o local de formatura. Aí, o nosso comandante de
grupo e o sargento monitor, imóveis, esperavam por nós. As duas
horas seguintes passamo-las num terreno vizinho à parada,
fazendo um teste à nossa capacidade de nos deslocarmos debaixo
de fogo de mascara(abrigo) em mascara. De novo veio ao de cima,
a forma pouco cuidada como tínhamos colocado os porta
carregadores e o cantil no cinturão, e a forma pouco adaptada ao
corpo do nosso uniforme camuflado. Acelerados pelos tiros de
bala real do nosso alferes, fomos enfiando o quico, cada vez
mais pela cabeça abaixo, sob pena de apanharmos algum furo. As
calças foram sofrendo rasgões e as costuras descosidas com as
sucessivas quedas e rolamentos no chão. Se a ginástica matinal
fora dura, estas horas de técnica de combate depressa o fizeram
esquecer. A única vantagem em relação à educação física, é que
só trabalhava um de cada vez , havendo por isso, períodos
prolongados de descanso, debaixo do sol que escaldava até em mim
que crescera naqueles ambientes. Terminada esta instrução, não
chegámos a destroçar. Quando atingimos o local da parada para o
fazer já lá se encontrava o resto da companhia formada no
habitual “u,” pronta para iniciar uma instrução em conjunto.
Pelo aspecto, ou era marcha ou trabalho de estrada, (uma forma
acelerada de correr e marchar alternadamente que punha qualquer
cristão a botar os bofes pela boca fora logo aos primeiros cem
metros de percurso). O capitão Trovão mandou: direita volver e
formar a dois. Na frente de cada grupo, o comandante de grupo,
atrás o sargento monitor e ou o soldado auxiliar. No fim de tudo
o carro de som e a ambulância. A coluna começou a deslocar-se em
passo rápido. Quando entrámos na picada, que percorrêramos de
manhã, incorporaram-se duas equipas de comandos em dois Unimogs
de escolta. O andamento tornou-se sucessivamente mais veloz,
fazendo com que cada um tentasse continuamente superar-se a si
mesmo. Atacámos a subida matinal, ultrapassando o morro que nos
pusera a língua de fora apenas há poucas horas. Do outro lado, a
descida era suavizada por a picada descrever uma extensa curva.
Ao longe, uma grande planície revestida a capim, pontilhada de
onde a onde de acácias e embondeiros num contraste gritante de
formas que à elegância de umas se opunha a obesidade das outras.
O sol brilhava a pino. Esbranquiçadas, avizinhavam-se grossas
nuvens de oeste. Na sua passada gigante, o Capitão Trovão
impunha um ritmo de autêntico sprinter. No grupo de oficiais, o
nosso comandante de companhia não estava a aguentar a pressão e
já seguia no final do grupo ameaçando integrar-se no nosso.
Coitado, a idade pesava e a preparação prévia não tinha sido
cuidada. Lá atrás, ouvia-se o carro da “psico” que de forma
ritmada alternava os acordes do “Donne Moi Ma Chance ........
encore...” com o grito Comandos, vamos em frente Comandos. Aos
poucos os mais fracos começaram a cair e á medida que a
ambulância os apanhava iam enchendo o espaço vago. Outros não
aguentando o ritmo iam continuando o deslocamento à medida das
sua possibilidades constituindo pequenos grupos isolados atrás
da escolta mas de certa maneira um risco para a sua própria
segurança. Mas uma saída do acampamento tem sempre o regresso e
no final da descida e quando já quase pisávamos a planície, o
Capitão Trovão mandou dar meia volta e prosseguir o movimento no
sentido do regresso. Nesta altura comecei a sentir uma ferradela
no calcanhar direito que identifiquei como o inicio duma bolha,
o que me obrigou a cerrar os dentes procurando forças para
continuar no ritmo que a testa da coluna continuava a imprimir.
Na inversão de marcha e à medida que íamos passando uns pelos
outros vi em todos aqueles rostos além do suor escorrendo
misturado com o pó que pululava pelo ar, levantado pelas botas e
pelos pneus das viaturas, o esgar que cada um fazia dando
mostras do sacrifício que boa parte da companhia de instrução
estava a realizar. Depois foram aparecendo os mais fracos que
coxeando uns e já aproveitando o transporte na ambulância e
veiculo da escolta outros, davam um ar de tragédia a todo aquele
cortejo. E o carro de som continuava “Donne moi ma Chance..” e
música batia na minha cabeça, queria a minha chance de também
ser comando. Estávamos agora a chegar à parada e ao final deste
tormento. Antecipava o momento em que poderia desapertar o
equipamento e o dolman beber alguma coisa e descansar. Mas o
Capitão Trovão continuou em frente, ultrapassou a parada e
continuou com o que restava da companhia atrás de si. Sim porque
na parada como se golpe de fraqueza passasse pelo meio de todos
houve mais uns quantos que se atiraram para o chão e ali ficaram
como se todas as forças os tivessem definitivamente abandonado.
Entretanto os socorristas andavam numa roda viva, transportando
para uma zona onde habitualmente estava estacionada a ambulância
e onde tinham sido estendidos dois toldos de barraca de molde a
proporcionar uma certa fresca, os inúmeros instruendos a quem as
forças faltaram.
Finalmente chegou ao fim o nosso sacrifício. Logo a seguir á
entrada na picada que dava ligação ao Ucua o Capitão Trovão deu
meia volta e regressou dando por fim a marcha forçada. Aquele
ultrapassar da parada tinha vencido a resistência psicológica de
muita gente. Começava entender a referência no Código Comando
aos “ estóicos e abnegados que servem sem preocupação de paga ou
de satisfação de interesses de qualquer natureza”. Olhando para
a formatura verifiquei que nem toda a gente que desistira estava
no local de reunião de indisponíveis. Numa das pontas o Capitão
Trovão esperava por aqueles que durante a marcha sem terem ainda
“dado o litro” descolaram do conjunto e aproveitaram para dar um
pequeno e pouco cansativo passeio. Frente a este grupo de cerca
de vinte instruendos no qual se encontrava o Francês e o
Cerqueira, o Capitão explodiu:
- verifiquei com estranheza que os senhores instruendos estão
mal preparados no que respeita força de pernas, por isso temos
que dar ênfase a essa preparação. Vamos então exercitar as
pernas!
Dito isto começou a comandar de forma ritmada a execução por
parte do grupo, séries de vinte flexões de pernas, lembrando que
no curso quem não estava ao nível dos restantes elementos, tinha
que ser ajudado a conseguir aquele nível. Apesar de cansado e da
pena de os ver naquela situação divertia-me por saber que havia
quem ensinasse os espertos que poderiam ter oportunidade de
surgir neste tipo de situações.
Estávamos agora numa pausa que correspondia ao intervalo de
almoço. À nossa volta procurávamos sem sucesso uma sombra que
nos aliviasse a calorada que todos sentíamos. Mas nos poucos
metros quadrados que eram destinados ao nosso grupo apenas uma
desgraçada arvore aparecia para nos fazer recordar o que é uma
sombra e que bem que sabe naquelas latitudes. Em grupos de
quatro e cinco fomos revirando as caixas da ração de combate
procurando as latas de sumos ou similares, como a fruta em calda,
perspectivando uma hipótese de atenuar o secão que cada um tinha
na garganta. De repente alguém se lembrou que o Sá fazia anos.
Por entre os parabéns e cachaços da praxe, cada elemento
aproveitou para dar uma “prenda”, que na maior parte dos casos
foi uma tampa do cantil cheia de agua, que o aniversariante
avidamente bebeu. Na altura passou por perto o nosso alferes
comandante instrutor roendo de forma muito cínica uma bela e
apetitosa maçã. Todos sem excepção registamos a imagem os nossos
estômagos e papilas gustativas lembraram as sensações que o
fruto proibido determina normalmente e guardamos para o resto da
vida a sensação de ter a boca seca o corpo sem água a pele
quente e húmida e suja juntamente com a imagem de um instrutor a
banquetear-se com linda e vermelhinha maçã.
Passamos a parte da tarde a ouvir explicações sobre um
equipamento rádio já nosso conhecido mas agora visto sobre novas
potencialidades que o Capitão das transmissões nos veio mostrar.
Continuou-se com uma aula de primeiros socorros cujo tema foi
calculem os golpes de calor. Do local onde estávamos formados em
“u” podíamos observar as idas e vindas do pessoal à enfermaria
improvisada vendo as “baixas” que se iam dando e as poucas altas
que os mais resistentes e com maior força de vontade iam
voltando aos pelotões. À medida que a tarde foi chegando ao fim
o saldo das altas parecia ser mais favorável talvez pelo calor
ir diminuindo conforme a noite se ia aproximando e por
praticamente toda a companhia de instrução ter tido instruções
calmas e pouco mexidas em contraste com o que acontecera de
manhã. Já o sol descia acentuadamente no horizonte quando vimos
aproximar-se do centro da parada o Capitão Trovão e por trás
dois Unimogs habituais nas escoltas. Pela nossa mente
perpassou-nos que estávamos para realizar certamente mais um
passeio, o que aterrorizou a rapaziada que nesse final de tarde
tinha deixado a enfermaria e regressado aos respectivos grupos
convencidos que o trabalho esgotante desse dia já tinha
terminado. Azar porque agora não tinham possibilidades de
retroceder por mais ar adoentado e enfraquecido que
apresentassem. Chegou o final da instrução, sabedores dos males
que as insolações podem provocar, aguardamos perto da parada a
convocação para mais um martírio que afinal não aconteceu, era
apenas acção psicológica AP como na gíria chamávamos. Após uns
momentos de espera regressamos aos nossos estacionamentos depois
de indicações recebidas nesse sentido do soldado Aleluia.
Passamos o resto da tarde tentando arranjar da melhor forma
local de dormida e aproveitando as ultimas resteas de luz solar
consumir as latas correspondentes à terceira refeição e como
eram as ultimas da ração de combate (saldos) eram as que menos
tinham agradado na escolha inicial. Assim na nossa equipa
apareceram para consumir as odiadas sardinhas em tomate com
molho picante e “plumrose” de carne normalmente conhecida como
merendinha de carne, sorte foi termos o Cerqueira connosco que
nesta coisas de comer não deixava os créditos por mãos alheias,
assim pudemos ir trocando as conservas que não eram do nosso
agrado por outras mais apetecíveis, na base de duas embalagens
por uma, que nisto de negócio o Cerqueira tinha raízes, não
ficando nunca a perder. Depois de uma parca refeição
preparamo-nos para finalmente descansar, pois sabíamos que aqui
o Sol desaparecendo no horizonte, são cinco minutos e é noite
cerrada, não havendo aquele período de habituação crepuscular
que nos permite na Europa fazer calmamente a transição do dia
para a noite. Estendi o pano de dobrado em dois em cima do capim
deitado com o cantil e o cinturão fiz uma almofada e com o céu
por tecto preparei-me para passar a noite. Ao meu lado os outros
companheiros da equipa e do grupo que conjuntamente com os
restantes elementos dos grupos de instrução descreviam um grande
circulo ao longo da orla do acampamento, todos com a cabeça
voltada para fora e a G-3 junto aos braços e em posição de
rapidamente ser utilizada. Na zona reservada aos instrutores
imperava o silêncio e dois ou três candeeiros semi ocultos
referenciavam pela luz que deixavam escapar, o local. Penso que
adormeci ouvindo os primeiros acordes do ”Donne moi ma chance”,
e a indicação de “Fala a Voz do Comando”.
- Acorda Brito! Disse-me o Sá mandando-me uns pontapés nas botas
que trazia calçadas.
- O que foi ?! respondi eu estremunhado e atónito por ser
acordado daquela forma em plena escuridão.
- Oh pá, mal acabou a “Voz do Comando” que tu não ouviste porque
roncavas a bom roncar , mandaram formar na parada em uniforme de
combate. E só deram os três minutos do costume por isso
despacha-te que eu vou andando e o resto do pessoal já vai a
caminho.
De forma atabalhoada lá acabei de me equipar e larguei a correr
para a parada. Ao chegar a voz do capitão Trovão sentenciava:
- instruendos que estão a chegar “pagam” uma completa de trinta.
Saído do sono aí estava eu no exercício. Trinta extensões de
braços, trinta cangurus e trinta abdominais foram o preço por
chegar tarde à formatura. A senha para poder juntar-me ao grupo
estava entregue.
Depois da apresentações com os cerimoniais habituais, o capitão
Trovão mandou direita volver. Na picada anexa à parada as duas
viaturas com as duas equipas de comandos. Uma à frente e a outra
na retaguarda da coluna atras do carro de som e da ambulância.
Foi um trabalho de estrada. O mesmo itinerário da marcha de
manhã, mas o ritmo diferente. Quatrocentos metros de corrida
seguido de duzentos metros de marcha. Fomos realizando o
percurso de forma bastante mais rápida e menos monótona do que
anteriormente e também com menos “baixas” já que o tempo mais
ameno e por isso mais convidativo ao exercício aliado certamente
ao facto da noite ser escura e o receio de cada ficar para trás
isolado fez com que cada um fizesse das tripas coração e
tentasse chegar ao final integrado no “grosso” da coluna. Por
isso o pelotão de atrasados não formou seguindo a companhia
depois de destroçar, por pelotões a levantar água, pão e a ração
de combate para o dia seguinte. Era quasi uma hora quando fiz os
preparativos para dormir, depois de ter bebido uma boa golada de
água. Ouvi os acordes do “Donne moi ma chance” e a Voz do
Comando que se lhe seguiu. O conteúdo referiu os sangrentos
acontecimentos de quinze Março de mil novecentos e sessenta e
um, as manobras na ONU e a ligação com um terceiro conflito
mundial já em curso. As palavras ficaram na memória ligadas aos
painéis com fotografias dos trágicos acontecimentos e que com
legendas alusivas interpretavam todo aquela catadupa de
informação rodeando a parada onde formávamos aqui na Mussenga e
mais tarde no Centro, em Luanda.
Dormi profundamente sem olhar a qualquer circunstância que me
pudesse produzir insónias. Como desde sempre, o raiar do Sol
funcionou como despertador natural. Algumas dores nas costelas,
provocadas pelas irregularidades do colchão mas que foram
passando à medida que me fui espreguiçando. Uma olhadela à volta
procurando um bom lugar onde pudesse fazer as minhas
necessidades fisiológicas de caracter sólido e eis-me no meio do
capinzal alguns metros para fora do circulo limite do
acampamento, de cócoras em posição propicia para pensamentos
filosóficos, olhando a natureza na sua beleza de mais um
despertar tropical. G-3 à mão. Nas arvores, em frente, um grupo
de macacos salta alegremente de ramo em ramo, guinchando por
tudo e por nada. De vez em quando uma olhadela ao trabalho
efectuado verificando os arredores, não vá o diabo tece-las. Na
zona há cobras, formiga quissonde, lacraus, por isso é
conveniente estar atento a todos os indicadores que apontem a
permanência de tão incómodos vizinhos. De súbito os macacos
emudeceram e cessaram o bailado que executavam. Algo os
perturbou. A G-3 na mão, as calças na outra, situação incomoda e
critica. Porém um restolho no capim afastando-se do local onde
me situo descomprime-me e aproveito para terminar a obra. Retiro
do local fazendo segurança à retaguarda e apressadamente
regresso às nossas “linhas”. É poético começar assim o dia mas
às vezes perigoso. Segui os preparativos para mais um iniciar de
actividade. Barba feita, dentes lavados, botas engraxadas mangas
bem arregaçadas e boina na cabeça. Prontos para mais um dia.
Similar ao anterior, mas com mais gente a visitar a enfermaria.
Pelo meio surgiu uma novidade, fomos à carreira de tiro. Para
nosso espanto num terreno plano onde o capim fora deitado fora
construída uma carreira de tiro. Os alvos estavam alinhados com
a orla da mata que delimitava a clareira. Ao lado de uma
sequência de trinta alvos de tiro de precisão separados por uma
distância de cerca de vinte metros estavam duas séries de cinco
alvos de tiro de combate separadas entre si por um espaço de
cerca de dez metros. Iniciamos o tiro pelo tiro de precisão.
Cada instruendo fez um carregador deitado, depois de joelhos e
depois de pé à distancia de cinquenta metros. No final cumprimos
uma GAM que nos preparou para o tiro de combate. Esta sessão foi
muito mais animada. Entre cada sessão fazíamos uma completa de
vinte necessária segundo o soldado Aleluia para nos dar o
cansaço que em combate cada combatente sofre. Ao fim do dia eram
já perto de cinquenta, o número de instruendos deitados no capim
ou nas lonas da cobertura das tendas. Alguns estavam a soro e as
equipas médicas vigiavam-nos de perto. O cansaço foi-me
invadindo. Dentro do grupo o “cacimbo” começara a fazer estragos.
A educação e as deferências começam a ser substituídas por um
comportamento mais “animal”. A sensação de sujidade acumulada no
corpo vai-se transmitindo ao espirito. Tento manter a serenidade
e raciocinar.
Meio dia do terceiro dia. Na parada vários grupos estão na GAM (ginástica
de aplicação militar). O Sol a pino vai fazendo estragos. A
enfermaria vai albergando cerca de cem instruendos. Um terço do
efectivo. No nosso grupo o nosso alferes vai dando ordens: pró
chão ! levantar ! fugir! Alguns tiros são disparados à mistura.
Cada um de nós tenta atingir as zonas onde o capim ainda está de
pé para se esconder. Para mim em zig - zag! Cambalhota em frente
! deitou ! a rastejar ! até mim! Em circulo à volta do alferes e
sargento monitor vamo-nos arrastando pelo chão feito de capim
amassado e quebrado pelos três dias de sucessivas passagens em
cima. De repente o Alferes manda fugir. Na mão direita brilha
uma granada. Granada! Ouço nitidamente o saltar da alavanca que
solta no ar vai cair perto do local onde eu em corrida veloz
tento sair do local onde a granada vai provavelmente cair e
explodir. Conto dois três qua... e deito-me em voo para o chão.
Puuuuummm ! rebentou, depois do estrondo uma chuva de terra e
pedras cai-me em cima. Estou inteiro, verifico o equipamento.
Reunião! Grita o alferes. À minha volta. Corremos
desvairadamente. Olho à volta o Francês manca e fica para trás.
Sua “amélia” mexa essas pernas! grita-lhe o sargento monitor.
Não posso! Responde o Francês, caindo no chão.
- Não podes? Eu sou o Alferes Esteves, sou do xv curso de
comandos, o ultimo curso em que se fizeram Comandos, nessa
altura mesmo com uma perna partida um comando podia sempre!
Agora vêm para aqui estas “amélias” convencidos que isto é para
entregar e resolvem dizer que não podem! Vociferou irado o nosso
comandante de pelotão enquanto que nós nos entreolhávamos
perante aquele dialogo e verificávamos que a calça do “Francês”
ao nível da perna direita apresentava um pequeno furo assinalado
a cor de sangue que se espalhava pelo tecido camuflado.
- O que é que tem?
- Um furo nesta perna! Respondeu o “Francês” fazendo um esgar de
dor.
- Aleluia chama o pessoal da enfermaria para evacuar este doutor.
Dois maqueiros foram destacados
para transportarem o ferido para a enfermaria. Para ele acabou a
prova da sede. Mais tarde soubemos que um pequeno grão de areia
proveniente da explosão da granada tinha-lhe acertado na perna e
feito um pequeno ferimento, sendo tratado no local.
Da parte da tarde a seguir ao almoço o soldado Aleluia deu-nos a
boa nova:
- senhores instruendos preparem os vossos sacos para
regressarmos ao CIC. Uma sensação de alivio percorreu-nos a
todos. A ideia que a prova tinha terminado deu-nos um ânimo
renovado. A noticia chegou à enfermaria e logo boa parte dos
indisponíveis pediu alta e preparou-se para vir para junto dos
respectivos grupos arrumar as trouxas. Finalmente os
altifalantes anunciaram:
- Companhia de instrução forma imediatamente na parada. Cheios
de energia corremos para os locais de formatura habituais,
ansiosos por subir para as viaturas e fazer a viagem de regresso
a Luanda, cidade que mal tínhamos antevisto.
O cerimonial da formatura
cumpriu-se. Revista, apresentação dos grupos e companhia de
instrução pronta. Direita volver, em frente marche em direcção
ao parque auto. De soslaio verifico que as poucas tendas de
apoio que o acampamento tinha estavam a ser desmontadas,
verificando-se nos respectivos locais uma azafama habitual
nestas situações. Recolher toldos e ferragens, fechar malotes,
carregar as viaturas tudo tarefas que os militares da unidade de
apoio cumpriam na perfeição principalmente quando era dada ordem
de emalar a trouxa e regressar a casa.
A companhia de instrução seguia o seu trajecto em direcção ao
parque auto. Grupo de oficiais à frente, a seguir o de sargentos
e depois os dez grupos de praças, tudo em marcha à vontade. Foi
com estupefacção que vimos o grupo de oficiais que seguia à
nossa frente ultrapassar as viaturas e continuar a marcha sem
que o Capitão Trovão desse mostras de mandar alto à coluna e de
embarque nas viaturas. Toda a coluna ultrapassou as viaturas em
parque continuando a marcha pela picada para leste precisamente
a direcção contrária à de Luanda. Que seria?
- Vamos só fazer uma marchinha que estava no horário! Avisou,
gritando, para toda a gente o Capitão Trovão.
- As viaturas seguem atrás de nós e embarcamos no trajecto!
Continuou em voz bem alta.
Uma restea de esperança de que o
esforço seria pequeno fez-me ultrapassar o cansaço e aumentou-me
o nível anímico, dando-me forças onde já não as havia para
enfrentar mais este último desafio. Mas com boa parte do pessoal
tal não sucedeu e á medida que as viaturas iam ficando mais
longe mais instruendos iam desistindo deixando o grupo,
movimentando-se ao longo da picada de forma arrastada e lenta.
A coluna de viaturas vazias finalmente arrancou do lugar onde
estava parqueada e dirigiu-se em direcção a nós. Fizemos alas
para deixar passar as viaturas e vimo-las desaparecer na curva
seguinte.
- Vá só mais um esforço Comandos! Incitou o Capitão Trovão
tentando que aqueles que ainda não tinham desistido continuassem
no ritmo que imprimia à marcha.
- Vá que as viaturas estão aí mesmo à frente depois da curva.
Vamos embarcar e regressar a Luanda.
Sem pensar ia pondo um pé à frente do outro, esquecendo tudo
aquilo que à minha volta se estava a passar. Apenas importava
marchar, com Luanda ou sem ela havia que não desistir. Isso eu
tinha percebido. Quem desiste perde. As viaturas apareceram à
nossa frente quando ultrapassamos a curva . terminamos a marcha
nesse local e embarcamos. Preparámo-nos para a viagem de
regresso, mas ao passarmos pelo local de estacionamento o
Capitão Trovão mandou alto à coluna e novamente desembarcamos.
Foi o “fim da picada”. Olhamos uns para os outros e vimos que
estávamos completamente derrotados incapazes de começar qualquer
actividade de novo.
- Que diabo um gato é um gato e um homem é um homem! Grunhiu o
Sá esquecendo a praia que o poderia esperar em Luanda numa
tentativa de nos motivar para mais esta partida da acção
psicológica em que o Corpo de Instrução nos pretendia pôr à
prova.
- Bem dito disse-lhe eu! Façamos das tripas coração e vamos lá
dar reposta a quem nos coloca tal desafio! Continuei, não
sabendo se acreditava ou não naquilo que estava a dizer.
A primeira instrução que tivemos
neste regresso ao acampamento foi teste de papel e lápis. Sim
teste, sentados no chão em xadrez, a coronha da G-3 pousada em
cima das pernas, servido de secretária, uma bic, e um
questionário em que fomos postos à prova sobre o conteúdo, de
toda a acção psicológica a que tínhamos estado a ser submetidos.
Cartazes, fotos, panfletos que nos tinham distribuído em várias
ocasiões e “vozes” tudo foi recordado e de tudo nos foi
perguntado certamente no sentido de se avaliar aquilo que
tínhamos guardado e a que prestáramos atenção. Convenhamos que a
disposição não era a melhor mas do ponto de vista se calhar era
a melhor altura para nos fazerem aquelas interrogações. As
perguntas eram múltiplas e variadas. Escolha múltipla, resposta
simples, positivo, negativo e de desenvolvimento. Até parecia a
faculdade. Depois foi novamente o embarcar e finalmente iniciar
a viagem de regresso ao Centro. A viagem foi um misto de sono e
vigília e só acordamos verdadeiramente quando avistamos a barra
do Dande vimos o mar e com ele fizemos todas as ligações
possíveis e imaginárias. As minhas ligavam-no fundamentalmente à
água, frescura e sede. À medida que nos aproximávamos do quartel
crescia a ansiedade, ida ao bar, cerveja, Cuca ou Nocal não
importava tinha que ser fresca e grande tipo girafa, pelo meio
uma chuveirada que arrastasse toda a poeirada entranhada nos
poros. Entramos na cidade analisando-a como se fossemos velhos
conhecidos e que tratávamos de um recontro depois de uma longa
separação, quando tal não tinha acontecido, mas o ritmo e a
intensidade dos acontecimentos transmitiam esta sensação. O
horário da chegada permitiu-nos a recuperação desejada. O dia
seguinte já seria outro capitulo.
Nesse dia a ordem de serviço rezava:
Quartel em Belo Horizonte...
) Diligências
Regressaram da Zona de Intervenção Norte onde cumpriram uma
missão de serviço os seguintes militares da Companhia de
Instrução:
- Oficiais.....
- Sargentos .....
- Praças..........
O Comandante
................................................
Tcor Inf “Comando”
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Testemunhos da 38ª Companhia de Comandos