Elisabete Gonçalves
Amiga e testemunha da
38ª Companhia de Comandos
TEXTOS DA
ELISABETE PARA A 38ª COMPANHIA DE COMANDOS
Natal na Guerra
Não sei se
vos acontece o mesmo, mas comigo à medida que avanço na idade,
as memórias mais dolorosas de toda uma vida assomam-me ao
espírito cada vez mais nítidas e , estranhamente, vou-me
apaziguando com elas.
Uma das sensações que mais me abalam é a Saudade. Esta palavra ,
que apenas existe na nossa língua e não tem tradução para outros
idiomas, define a Alma Portuguesa como nenhuma outra. Nesta
época de Natal, infalivelmente, ataca-nos com a fúria de um
tufão e procuramos-lhe remédio como se não houvesse amanhã.
O Natal mais longínquo que recordo é o 1967 e como não poderia
deixar de ser, é uma lembrança ligada ao meu pai e à sua
condição de militar em comissão no Ultramar, desta feita em
Moçambique, distrito do Niassa, em Vila Cabral que hoje se chama
,coloridamente, Lichinga.
Na aflição e angústia perpétua em que viviam as famílias da
Metrópole que tinham alguém do “lado de lá, tão longe”, ( raras
eram as que não tinham um filho, um pai, um primo, um irmão...),
numa época em que as facilidades de comunicação não eram, nem de
perto nem de longe, o que são nos dias de hoje, receber algum
sinal de que estavam bem e a salvo, era motivo de festejo e
lágrimas de alívio.
Os “bate-estradas” eram os mais comuns. Nesses aerogramas
amarelos de papel fino e em que se aproveitava todo o parco
espaço para escrever,que chegavam o mais rápido possível porque
eram recolhidos de avião, concentrava-se todo o nervosismo da
espera , na dualidade da vontade em saber o que lá vinha, que
tanto poderia ser uma boa ...ou uma fatal notícia. Esperava-se a
chegada do carteiro com igual ansiedade, tanto em aldeias
remotas de Trás-os-Montes, num isolado monte do Alentejo ou num
bairro qualquer da capital.
As fotografias pequenas,cuidadosamente embrulhadas nas duas ou
três folhas de carta em que se espraiavam as palavras de saudade,
eternizadas para sempre no preto&branco de margens recortadas,
com legendas na melhor caligrafia desenhada a tinta permanente e
sempre com a cuidadosa informação de data e local, eram as mais
desejadas. Mostravam sorrisos que escondiam o medo, cenários
tropicais com capim alto, negras envoltas em kapulanas e peito à
mostra com pequenos transportados nas suas costas, animais
selvagens que nunca imaginaríamos nem em sonhos e caça grossa
abatida, que seria nesse dia o rancho ao jantar.
Depois havia a “cereja no topo do bolo”....que era a sorte de em
nervosismo de unhas roídas da espera de horas em frente à
televisão, por acaso do destino, numa daquelas mensagens que uma
equipa gravava quase dois meses antes para se ter tempo de ser
editada e enviada convenientemente, alguém a dizer com uma
rapidez em atropelo de palavras “ De Vila Cabral, Niassa, fala o
1ºSargento de Infantaria Victor Gonçalves, que deseja à sua
querida esposa, filha muito amada e restante família na
Metrópole, um Feliz Natal e um Ano Novo cheio de prosperidade.
Adeus...e até ao meu regresso!”. Isso sim....era o melhor
presente que qualquer família poderia ter !
Nesse ano, poucos dias antes do Natal, eu e a minha mãe
recebemos um presente diferente: um embrulho com duas estranhas
bobines de fita gravada, com instruções precisas de como e
quando deveriamos ouvir. Cumpriu-se o estipulado e pediu-se
emprestado um leitor diferente, enorme e pesado, que se pôs na
mesa , ao lado das rabanadas e aletria, em frente à cadeira
vazia do lugar do meu pai. Quando a minha mãe carregou no botão
do “play”, apagou-se a luz vermelha do “pause”...e na magia de
uma luz verde...começamos a ouvir a voz do meu pai, serena e
doce como sempre me recordava...e que durante quase uma hora
falou connosco como se ali estivesse, na segurança do seu braço
por cima do ombro da minha mãe e na ternura que era estar no seu
colo. Eu, que ainda não tinha três anos e não entendia muito bem
como podia sair a voz do meu pai daquela estranha caixa,
encostava o meu olho à luz verde e perguntava”....paizinho, não
vês aqui o meu olhinho?”. A minha mãe não mo conseguia explicar,
com voz entrecortada de soluços. E durante uma hora...o meu pai
esteve ali . E mesmo sem a sua presença conseguiu, uma vez mais,
ser o Soldado defensor de quem precisa, pois na distância de um
oceano e lonjura de um continente...matou-nos de uma penada com
o seu tiro certeiro, a solidão,a angústia, o medo e as saudades.
Prendas de Natal com fitas e laçarotes? Não, obrigada. Não
satisfazem quem teve, mesmo na distância de 45 anos atrás...um
presente de grandiosidade do Amor como esse. Nunca NADA me
chegará....e também TUDO me basta.