Elisabete Gonçalves
Amiga e testemunha da
38ª Companhia de Comandos
TEXTOS DA
ELISABETE PARA A 38ª COMPANHIA DE COMANDOS
"Esta vida são dois dias"
Continuo a
não perceber, ainda hoje, porque dizem que “esta vida são dois
dias e o Carnaval são três”, porque naquele dia 25 de Fevereiro,
também dia de Carnaval no ano de 74, a minha percepção da vida,
tempo de a viver, Carnaval e música e o que, num ápice, nos faz
morrer...mudaram para sempre!
Naquele grande “alto” que 25 homens da 9ª Comandos , fizeram no
Chai, Serra do Mapé, macerados pela esgotante caminhada de volta
de uma grande operação, aconteceu o que, nem em mil anos,
julgávamos possível de acontecer.
Enquanto olhava, atarantado, o cenário lá do alto, tentando
mexer-me ao mínimo, só queria ordenar os acontecimentos e fazer-me
crer a mim mesmo que, mesmo na improbabilidade, tinha sido assim.
Mal ouvi a ordem de paragem, alijei o peso da mochila ao pé
daquela árvore e deitei-me em ânsias, fazendo dela grata
almofada, ainda que dura.
Encostada a ela estava também aquele pente de morteiros 60 e
toda a tralha dos cinco homens do meu grupo. Também a arma do
Marques, encimada de dilagrama estava pousada no seu tronco,
enquanto ele, ainda de pé me pedia um cigarro e esticava o braço
até mim, que em preguiça me não movi um milímetro para lho
chegar. Aquele homem era fantástico no tiro certeiro que fazia
com o dilagrama, e o irmão, primo e cunhado que faziam parte do
grupo diziam, em risota, que era apanágio da família. Ficou com
o cinturão onde permaneciam penduradas e entaladas contra o seu
corpo pelo tubo do dilagrama onde estavam montadas, mais duas
granadas defensivas prontinhas a ser usadas e foi retrocedendo
até ao tronco, acocorando-se até se sentar. Enquanto puxava a
primeira fumaça, ouviu-se um”clic” no assento, que ele julgou
uma pedra. Tacteou com a mão o objecto que lhe causava incómodo
e puxou-o para a frente da cara, para ver o que era.
Na surpresa do “que é isto?”, tinha-se esgotado a contagem
regressiva da granada em que, afinal, ele se tinha sentado.
Entre o tempo que mediou o clic do grampo a partir-se, o soltar
da cavilha e o esgotar da mecha ...tinha-se esvaído o tempo!
Eu não percebo como pode o barulho que se seguiu ter sido
transformado num baque que me apertou as costelas e me comprimiu
o coração. E o barulho de mais duas granadas e dos morteiros 60
que explodiram por simpatia ser tão brutal...que acho impossível
ter aguentado sem morrer nos 44 dias que fiquei sem ouvir!
Naquele instante em que o Marques se volatilizou e passou a
fazer parte da atmosfera ( porque dele apenas restaram como
prova da sua existência, milhentos farrapos de camuflado
espalhados como flocos de neve pelos arbustos...e um pé intacto
dentro da bota) o resto do grupo que ainda se não tinha sentado
ter ficado, qual puzzle macabro, espalhado aleatoriamente no
perímetro da explosão...nuca imaginei que ia sobreviver para o
poder contar. O estar deitado, embora a um metro de distância,
salvou-me a vida.
Na violência do sopro da explosão, fui atirado como um boneco de
trapos a uma altura próxima da copa da árvore. Tal como subi, em
violência mortífera de pólvora, assim aterrei, esfrangalhado.
Depois de refeitos da surpresa do que se pensou, inicialmente,
ser um ataque...o resto do pessoal reagiu em frenética confusão
e todos, a tentar conter o pânico e a desordem do caos fizeram o
melhor que puderam e, o seu coração e forças deixaram.
Em panos de tenda, apanhados em nós pelas quatro pontas,
recuperou-se o que dos camaradas tinha restado. O peso do seu
conteúdo formava um “v”, de onde pingava o viscoso e carmim
fluido que momentos antes lhes corria nas veias. Avassalador
momento aquele...em que damos conta que num minuto...ao “pó
retornamos”!
Improvisou-se o melhor que se pode um heliporto onde seis
helicópteros pousaram...enquanto outros cinco voavam em círculos
com os seus heli-canhões, disparavam em volta, fazendo a
segurança do perímetro....e desfaziam árvores no seu tiro de
protecção.
O barulho era infernal....e eu ouvia-o como se distante, ou
mergulhado na água profunda de um oceano.
No solavanco da corrida em maca a que me sujeitaram eu só
tentava não me mexer, que aquele pedaço branco que saia da minha
perna ficasse quieto. Com uma mão segurava o testículo direito
que continuava preso por um fio ao meu corpo...enquanto a outra,
com um raminho de árvore que tinha arranjado à presa, sacudia as
moscas e formigas que achavam que a pasta gelatinosa e vermelha
que me saia das entranhas, era o melhor repasto que tinham
conseguido por aquelas bandas.
Nunca vou, por mais que escolha as palavras , conseguir traduzir
o “Inferno na Terra” que foram aqueles dias, aquele momento!
Sei agora, quando penso naqueles meus irmãos que num segundo
eram força e vida....e no outro um saco de arrasto e miséria,
que um cigarro, tal como pesado material bélico de uma guerra em
que todos perdem...pode mesmo matar!