Elisabete Gonçalves
Amiga e testemunha da
38ª Companhia de Comandos
TEXTOS DA
ELISABETE PARA A 38ª COMPANHIA DE COMANDOS
If I Were A Boy...
No lado
esquerdo da porta de armas do Regimento de Infantaria 13 de Vila
Real, há um pinheiro manso que tem exactamente a mesma idade que
eu, pois foi lá plantado no ano em que nasci.
Cada vez que rumo
à minha cidade e em que numa das portas da "bila" tenho que
passar por ele, faço-lhe a mirada, meço-lhe a altura a olho...e
sinto que estou em casa. O 13, será sempre a “minha unidade de
coração".
Um filho de militar, à semelhança do seu progenitor, não tem uma
vida comum, como qualquer “civil”.
Como os ciganos de antigamente (a única diferença é que vai de
carro!), anda sempre de tralha às costas, a cada rodagem do seu
pai, de dois em dois anos país fora, e há uns anos atrás se as
condições o permitissem, também fazia uma ou mais “comissões” no
Ultramar.
Não é incomum a maioria deles ter nascido por lá, facto que além
da permanência por essas bandas, os marcou para todo o sempre.
As brincadeiras também não são comuns, pois com os irmãos em
terraço de casa transformado em parada, brinca-se à “ordem unida”
empunhando vassouras, ou fazem-se colecções de emblemas, guiões,
ou dísticos militares em vez de cromos da bola.
Os passatempos preferidos são, à socapa e perdidos de riso pelas
inépcias, ver os soldados fazerem slide e equilíbrio nos
pórticos, cronometrar a sua rapidez nas pistas de obstáculos,
apostando num deles como em hipódromos de corrida.
Sabe-se que há armas de tiro tenso, curvo ou de explosão em
leque e em que tipos de terreno se utilizam, com a normalidade
de ladainha de “Pai Nosso”, aprendido no aborrecimento de
catequese de sábado à tarde, quando o que se queria era
enfarruscar a cara com carvão e ornamentar chapéus com galhos e
folhas secas, em concurso infantil de “não me descobres!” na
liberdade de montes e campo aberto.
Conhece-se, desde cedo, o tipo de fardamento , quando e como é
usado e, em rebeldia adolescente, roubam-se umas calças de
camuflado ao pai, que se adaptam e encolhem, para calçar com
texanas e boina vermelha “à Comando”, fazendo furor entre as
colegas da escola. Não há conformismo nem explicação que chegue
para o facto de no Casão Militar não haver nº 36 nas botas de
Cavalaria ou ouvir um rotundo e indiscutível“não!” quando se que
ter uma boina militar de cada cor, para combinar com todas as
roupas do seu armário.
Adora-se....ração de combate, com as pastilhas de café que os
astronautas americanos levavam para o espaço e a fruta
cristalizada, que vinha em pacotinhos transparentes pequenos
demais para tanta vontade junta. Aquecer um enlatado com a
acendalha também era uma actividade fora do comum e tentadora. E
o sabor daquele leite achocolatado...continua incomparável!
O primeiro exercício de depilação das pernas ou barba que ainda
não existe...é feito à Gillette do estojo militar verde do pai
que tem um pincel macio e barra de sabão para fazer espuma.
Apura-se o seu manejo, depois das “naifadas” que se dão à
primeira passagem.
Não é incomum os progenitores serem chamados à escola porque os
filhos se metem em bravatas na defesa de mais fracos, porque as
dores divididas são menos pesadas e não podem em circunstância
alguma ver vítimas de injustiça sem se solidarizarem com elas,
justificando as camisolas rotas e rosto arranhado com um “...pelo
menos, ficou-lhes de emenda!”, como se lhes amenizasse o castigo
que a seguir suportam, mesmo com um “fizeste bem em ajudar.”
Ouvem-se histórias que entristecem, histórias de valentia e
coragem de heróis anónimos, de saudades, de precariedade e falta
de condições de vida, das mães dos lugarejos recônditos que
pedem em lágrimas que lhes não tirem o “amparo” ou risadas do
desconhecimento e factos da vida próprios de quem mora “onde o
Judas perdeu as botas!”.
Quando se é rapariga...a coisa complica-se: para poder assistir
a muitas das 32 recrutas consecutivas que dão os seus pais, têm
de manter um aspecto “andrógino”, de cabelo curto e estilo “arrapazado”,
pois quando as hormonas começam a fazer o seu efeito e os “magalas”
começam a olhar mais para elas do que o que o seu instrutor diz...acaba-se
precocemente aquela que poderia ser uma brilhante carreira
militar, os tiros na carreira do tiro e o montar e desmontar da
G3 sem olhar, “tão fácil...que até uma criança o faz”.Sente-se
uma grande revolta por ter nascido com o sexo errado e não poder
fazer parte da única vida que se conhece e adora, até entender
que haverá, vida fora , muitas outras coisas que compensarão
esse sentimento de perda, quando lhes nascer um filho varão...que
se encarregará de lhes cumprir o sonho.
Uma ordem é, indiscutivelmente, para ser cumprida e aprende-se
também que “o material tem sempre razão” e até uma "bala se não
desperdiça...em quem a não mereça",de forma limpa.
Fica-se triste, porque os sapatos e as botas têm que estar
impecavelmente polidos e tanto...que parecem sempre novos,
deitando por terra o motivo de comprar uns novos e mais modernos.
Porque os pais chegam consecutivamente a casa de braço ao peito,
canadianas ou queixo suturado, porque dão o exemplo na instrução
para depois exigirem, aprende-se que nunca se poderá não perdoar
a outrem ou exigir-lhe o que quer que seja, se não formos nós
próprios capazes de o fazer primeiro.
Aprende-se também que ninguém fica para trás em circunstância
alguma, e que se houver abundância ou escassez, será
equitativamente distribuída por todos, porque ninguém é mais que
ninguém e todas as vidas são preciosas.
Muito antes de saberem o que “são minorias étnicas”, “maçonaria”,
“confrarias”, ou qualquer outra agregação de elementos com
interesses, vivências ou objectivos iguais, sentem que fazem
parte de um grupo diferente, até no minuto em que demoram a
reagir à provocação de um “ só falas de tropa, pá!”
É esta diferença e percorrer de estrada, como aerograma amarelo
esperado nos tempos difíceis, que em tenra idade se aprende como
“bê-à-bá” em bancos de escola, que faz com que esta “família”
espalhada pelas mais diversas partes do país, se sinta una
quando se encontra. Mesmo que nunca, em algum momento da sua
vida, se tenham visto...!
Tal como aquele pinheiro à porta de armas, nunca deixarei que a
vida passe por mim. Eu, sim Eu, é que passarei por ela, à minha
maneira e nunca em derrota, porque como o meu pai sempre me
disse, “dos fracos, não reza a história” e que perante
adversidades, há que “avaliar, improvisar,adaptar...e prosseguir!”
E porque é assim que se encara o desafio nesta “família”, é
exactamente assim e nunca por menos...que o farei também.